Luiza 23/06/2021
Lamaçal comovente
Como não amar Jorge Amado?
Esse é o segundo romance de Jorge Amado, publicado dois anos depois de O país do carnaval (1931).
É um livro pequenininho... Mas para os fãs desse escritor (eu, eu, eu!), é leitura obrigatória.
E é uma leitura bem rápida, com uma narrativa bem gostosa.
O tema de "Cacau" é prenúncio da temática que Amado acabaria desenvolvendo com maior profundidade nos seus romances seguintes: a luta de classes, a triste realidade dos despossuidos...
Abaixo, segue um trecho que, entre tantos, me comoveu (contém spoilers).
TRECHO:
? PUTA NÃO MORRE POR AMOR
? Trecho do livro "Cacau"
.....
Existia em Pirangi um beco sem saída, ao qual chamavam com razão de ?Rua da Lama?.
Apesar do lamaçal, as senhoras casadas temiam aquela rua de mulheres perdidas.
? A polícia devia proibir aquilo ? diziam.
? Ora, a polícia é a primeira.
? É mesmo d. Rosália. Os nossos maridos vão gastar com aquelas misérias, Deus me perdoe, tudo que ganham.
? E eu que preciso de um chapéu e um vestido... Ma só faz prometer. Eu acho que ele dá o dinheiro a essas pestes.
? Elas arrancam.
? Mas Deus castiga, d. Rosália, Deus castiga.
?
Zilda era uma mulatinha clara, olhos grandes de criança que nada sabe da vida?
Estava na vida desde os onze anos. Morava naquela casinha com Antonieta, Mariazinha e Zefa. Sobre o seu corpo apenas um vestido, grávido de rasgões. Quase não tinha seios a pobre criança. Tomava o café maquinalmente sem falar.
João Grilo que dormira com ela, beijava-a. Ela se deixava beijar sem revolta, naturalmente. Aquilo fazia parte da profissão. E ela com treze anos apenas, conhecia muito bem a profissão.
? Quantos anos você tem, menina?
? Treze.
? Só.
? Faço depois de amanhã.
? Quem foi?
? O filho do coronel Misael.
? Quantos anos você tinha?
? Ia fazer onze.
? E já era mulher?
? Ainda não.
Zefa me contou toda a história. Filha do velho Ascenço, Zilda constituía toda sua família. Trabalhavam para Mané Frajelo, ele na derruba, ela na juntagem do cacau. Moravam na beira da estrada. Todo ano, Osório, o filho do coronel, que estudava na Bahia, vinha pelas férias até a roça. O velho Ascenço da porta da casa cumprimentava-o e perguntava pelos seus estudos:
? Como vai, coronézinho, da sua leitura?
O estudante parava o burro para olhar as coxas de Zilda, bem grossas apesar de dez anos.
Um dia Osório vinha para o povoado. O velho Ascenço estava em Pirangi e Zilda arrumava a casa. Começou a chover e Osório pediu agasalho. Não respeitou os dez anos de Zilda.
Tragédia de gente pobre: um pai que bota a filha para fora de casa e morre de desgosto.
? E a tôla ainda gosta do miserável. Zilda confessava:
? Gosto, que jeito. Ele é tão bonitinho. Quando ele vim esse ano há de dormir comigo?
?
O suicídio de Zilda foi uma das coisas que mais me comoveram durante a minha demora no sul da Bahia. Quando ela soube que o futuro doutor vinha passar o São João na roça, comprou um vestido novo com as suas economias e uma caixa de rouge.
Vestida de novo e muito pintada, esperou-o no meio da estrada. Ele passou sem ligar a ela.
Mas à noite veio ao povoado e foi à rua da Lama. Zilda falou:
? Osório...
? Quem é você?
? Zilda.
? Qual Zilda?
? Você me descabaçou na fazenda de seu pai.
? Como você está feia... Está um couro, puxa...
E foi dormir com Antonieta.
No outro dia Zilda bebeu veneno. As rameiras fizeram uma subscrição para enterrá-la, pois ela gastara as economias no vestido novo.
Quando o enterro passou, pobre caixão mal pintado, Osório atravessava o povoado a cavalo.
? De quem é esse enterro?
? De Zilda.
? Morreu?
? Matou-se.
? Que seja feliz no inferno...
Dona Rosália não acreditava que prostituta se suicidasse por amor. Prostituta se mata para castigo dos seus pecados.
?
Pobres mulheres, que choravam, rezavam e se embriagavam na Rua da Lama. Pobres operárias do sexo. Quando chegará o dia da vossa libertação?
Quantos mananciais de carinhos perdidos, quantas boas mães e boas trabalhadoras. Pobre de vós, a quem as senhoras casadas não dão direito nem ao reino do Céu.
Mas os ricos não se envergonham da prostituição. Contentam-se em desprezar as infelizes. Esquecem-se de que foram eles que as lançaram ali.
Eu fico pensando no dia em que a Rua da Lama se levantar, despedaçar as imagens dos santos, tomar conta das cozinhas ricas. Nesse dia até filhos elas poderão ter.