Queria Estar Lendo 17/09/2018
Resenha: Terra das Mulheres
Terra das Mulheres foi originalmente publicado em 1915; a autora, Charlotte Perkins Gilman, imagina nele um mundo utópico habitado unicamente por mulheres - e usa esse cenário para trazer críticas intensas e poderosas ao patriarcado e ao machismo.
Exemplar foi cedido pelo Grupo Editorial Record para a resenha.
Por dois mil anos, nenhum homem pisou naquele país. Quando a expedição de Van, Terry e Jeff acaba por ouvir falar da "terra das mulheres", eles decidem que precisam conhecê-la. Quando o fazem, acabam prisioneiros-convidados das habitantes do misterioso e secreto país. E, através dos relatos de Van, Charllote Perkins Gilman ilustra o que seria o mundo ideal se a história tivesse sido construída sem a presença da figura masculina.
E que mundo ideal, senhoras e senhores! O país em questão foi criado a uma perfeição absurda. Tecnologia e avanços na medicina, na psicologia, nos estudos, na criação das meninas. É tudo impecável. Não existem doenças, guerras, rivalidade. Não existe nada além da coexistência pacífica de uma sociedade grandiosa e amorosa.
"Hoje, agora, imaginemos uma sociedade livre da opressão do patriarcado. Como ela se organizaria, e o que faríamos com a liberdade conquistada? As rachaduras e os problemas insolúveis de Terra das Mulheres são um terreno fértil que nos permite sonhar com novas utopias, assim como Charlotte Perkins Gilman ousou sonhar um dia. [Prefácio]"
O livro se inicia com um prefácio da editora, onde ela relata os ideais e a construção de mundo feita por Charlotte. É bem distante do que seria uma utopia feminista nos dias atuais porque a luta das mulheres, naquela época, se distanciava do que conhecemos hoje. A palavra "igualdade" difere do que se é exigido nos dias atuais, mas isso não torna Terra das Mulheres um livro ruim. Muito pelo contrário. É uma obra poderosa em seus questionamentos.
A partir do momento em que esses três homens caem no país dessas mulheres, toda a diferença de criação, tratamento e posição entre ambos os sexos é devidamente questionada. Charlotte usa a visão machista e misógina de seu protagonista - bem menos perturbador do que Terry, por exemplo, mas ainda fadado aos males do patriarcado abusivo - para levantar críticas a tudo que é tóxico e aterrorizante na sociedade longe daquele pedaço de terra.
As mulheres de Charlotte são matriarcas. A sociedade dessa terra é construída em volta da Mãe, da figura materna, da ideia de que as mulheres existem para continuar a existir - que seu ciclo de vida gira em torno de "dar a vida" a outras mulheres. Elas se reproduzem através do desejo de ser mãe; não existem relação sexual, não existe prazer. As mulheres não se relacionam amorosamente no sentido homoafetivo da palavra. Elas se amam como irmãs e mães; não existe nada além dessa ordem estabelecida.
"- Elas parecem não perceber que somos homens. Tratam-nos... bem... como tratam umas às outras. É como se sermos homens fosse um detalhe menor."
Com os homens ali, o interesse da sociedade matriarcal é de entender como funciona o mundo deles. Um mundo devastado por guerras e inconsistência, erguido à base de desigualdade e da inferiorização das mulheres. A cada questionamento de uma das personagens do livro e a cada resposta de Van, o narrador, para explicar tal situação, meu sangue fervia mais e mais.
É um livro que abre seus olhos para as injustiças, e escancara tudo ainda mais caso você já as perceba no dia a dia. Por se tratar de uma publicação de 1915, era de se esperar que algumas críticas fossem ultrapassadas, mas não. É tudo exatamente atual. A posição da mulher como mãe, trabalhadora, esposa, como indivíduo dentro da sociedade. Tudo isso é trazido à tona pela narrativa e comparado entre a sociedade patriarcal e aquela utopia edificada pelas mulheres.
"Para aquelas mulheres, na extensão ininterrupta de dois mil anos de civilização feminina, a palavra "mulher" evocava esse amplo contexto, em todo o seu desenvolvimento social; e a palavra "homem" significava para elas apenas macho - o gênero."
Mulheres que nunca conheceram o sexismo, a violência, a luxúria, a obsessão, o ciúme, a rivalidade. Mulheres que são mães acima de tudo e que por dois mil anos trabalharam, estudaram, pesquisaram, evoluíram e se fortificaram sem a presença de um homem. Que criaram um mundo perfeito à sua imagem e semelhança e mostraram ao trio de invasores que subjugar um gênero com base em ideias preconceituosas e ofensivas não significa nada. Em sua calmaria e paz, aquelas mulheres mostraram o quanto são melhores do que toda a História do homem.
E foi interessante como, através dos olhos do Van, Charlotte expôs a aceitação do personagem e a maneira com que ele reagia aos novos conhecimentos. Jeff era uma figura bem mais aberta, um homem disposto a se curvar à verdade e a aceitá-la, a fazer parte dela. Van, ainda que relutante, via naquelas mulheres o avanço e as melhorias e o quanto a civilização da sua terra era tão melhor e mais ideal do que a conhecida por ele.
"- Bobagem, Terry. Você sabe quem, em geral, homens gostam mais de cachorros.
- Porque o amam tanto, principalmente os homens, esse animal é mantido preso ou acorrentado."
Alguns pontos do machismo nos relatos do personagem ainda me deixaram pistola ao extremo; justificar estupro marital e "desculpar-se" pela situações ao qual Terry, o mais babaca e abusivo, foi "forçado" a viver, sem dúvidas encabeçam a lista. Mas são coisas que estão ali exatamente para incomodar. Nada que Charlotte usa no livro existe por qualquer razão. É tudo parte da grande crítica, do gigantesco questionamento que a obra deixa.
O próprio Terry está ali como alegoria ao mundo masculino. Ele é a representação precisa do machismo, com sua postura opressora, com a voz relutante em entender a igualdade, com a postura resoluta em não ceder espaço para que essa igualdade se faça totalmente presente. É de um nojo enfurecedor o quanto o Terry é parecido com muitos homens que vemos hoje em dia; de 1915 até aqui, muito pouca coisa mudou.
Terra das Mulheres pode ter ideais ultrapassados e que se distanciam do que o feminismo clama nos dias atuais. Contudo, em suas discussões, tira de letra tudo que coloca em pauta.
"Pensávamos nelas como "Mulheres", e, portanto, tímidas, mas havia dois mil anos que não temiam nada, e certamente mais de mil desde que esqueceram essa sensação."
Como a editora questiona no prefácio, uma das coisas mais impressionantes desse livro é a interrogação que deixa em nossas cabeças. O que seria a Terra das Mulheres hoje em dia? Qual seria o cenário utópico de igualdade para se construir um mundo ideal regido apenas por mulheres? Se Charlotte já levantou tantas questões em sua época, o que poderíamos produzir hoje em dia? O tanto que esse livro deixa em aberto para fazer pensar é absurdamente indescritível.
Terra das Mulheres foi uma leitura impressionante, carregada em simplicidade narrativa e em criatividade questionadora.
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