Procyon 07/04/2023
O casamento ? comentário
?O 'homem de bem' é um cadáver mal informado. Não sabe que morreu.?
? Nelson Rodrigues
Único romance escrito por Nelson Rodrigues, O Casamento é um livro que condensa, que sintetiza as temáticas ? ou obsessões ? do autor. Com uma narrativa folhetinesca, tendo como pano de fundo o Rio de Janeiro dos anos 60, o livro evoca aquelas tipologias e situações cotidianas do Nelson Rodrigues cronista e do Nelson Rodrigues dramaturgo. Nelson traz, numa economia de meios, uma saraivada de paixões ocultas, com uma crueza na exposição dos acontecimentos explosivos da narrativa.
?Sabino, que era traído por Maria Eudóxia, a traía com Noêmia, que traía Sabino com Xavier, que traía a esposa enferma nas vésperas do aclamado casamento carioca de Glorinha Uchoa, que era traída por Teófilo enquanto o traía com Antônio Carlos, que traía Maria Inês que, até onde sabemos, não traía, conjugalmente falando, ninguém. O que parecia ser um poema de Carlos Drummond de Andrade às avessas se colocou, na verdade, como sendo a espinha dorsal do enredo sórdido e erótico de O casamento? (COSTA, RODRIGUES, 2017, p. 80).
Tendo como mote principal a família tradicional judaico-cristã, o romance entra em conflito com a normatividade paterna autoritária e, com erotismo e sexualidade de personagens em condições primitivas (em contraste com sua estatura social) e de libido desenfreada, expõe os desejos inconscientes de masoquismo, exibicionismo, homoafetividade, adultério, incesto e abuso sexual. O autor evidencia o fracasso da instituição familiar burguesa, em que o conflito surge quando o indivíduo (doutor Sabino) não está de acordo com o comportamento padrão, num eterno embate entre seus valores e seus desejos.
(Inicialmente, o leitor é dado a crer que o problema a ser resolvido na narrativa é a ?pederastia? do noivo, porém, quanto mais o autor nos leva pelos meandros dessa família e de toda a estrutura de sociedade daquela época e daquele lugar, mais percebemos as hipocrisias e os segredos ocultos das personagens.)
Nelson confere uma certa agilidade ao enredo, que contrapõe o lirismo rebuscado da linguagem escrachada. Seus personagens, mergulhados na tensão, trazem um encadeamento de situações que levam a conclusão de que, para a família tradicional, tudo é permitido desde que esteja sob o véu das aparências. Personagens como Glorinha (que personifica a idealização feminina das fantasias de Sabino) e Antônio Carlos (a profanação em carne e osso) entram em choque uns com os outros, ajudando a construir uma atmosfera gradualmente apocalíptica. Constantemente preocupadas com a opinião pública, as personagens recusam a realidade concreta para máscaras normas sociais. Por detrás do cínico mascaramento da realidade, o que vemos como saldo final é um retrato do ?homem de bem?, cristão e patriarca da família tradicional (defensor da moral e dos bons costumes), que, na verdade, demonstra-se um adúltero, incestuoso, maníaco, criminoso e hipócrita, sobretudo.
Em suma, achei-o um livro instigante, de uma leitura ágil, crua, que nos adentra nos devaneios das personagens; que traz as temáticas rodriguianas elevadas a enésima potência; que faz um painel lancinante das diferenças sociais; mas que sobretudo prefigura um país devastado quase 30 anos depois. Essa tragicomédia, além de dialogar com o passado autoritário da ditadura, dialoga também com o nosso contexto presente: o de um país corroído pelos escândalos de corrupção, de impeachments e golpes ?contra a moral e os bons costumes?, de marchas pela família e pela liberdade, pelos ecos autoritários, e que, desde o relançamento deste livro pela Nova Fronteira em 2016, vem se acentuando cada vez mais.
(Aliás, a mim, todos os personagens me pareceram absolutamente odiosos ? talvez com exceção da secretária, que morrera injustamente.)