@literatoando 27/04/2020Lolita meets O Exorcista - ig: @litera.toandoO livro se passa no século XVIII e vai acompanhar a história dessa família já em decadência, composta pelo marquês Ygnacio, sua esposa Bernarda Cabrera e a filha deles, Sierva María. Embora eles estivessem no período das vacas magras, ainda tinham uma boa quantidade de escravizados e sabemos, desde o início, que é com eles que a menina Sierva Maria fica a maior parte do tempo. O parto dela foi de sete meses, com complicações que quase causaram sua morte e, indesejada desde o princípio pelos pais, sempre viveu aos cuidados dos homens e mulheres escravizados por Ygnacio, dormindo e se alimentando com eles, aprendendo diversas línguas africanas e professando a religião deles também. Até que, em um dos passeios pela cidade, Sierva Maria é mordida por um cachorro e, logo depois, descobre-se o surto de raiva transmitida pelos cães dali, porém a menina passa certo tempo sem nenhum sintoma, dando a entender que ela escapou incólume da doença. No entanto, Sierva, certo dia, passa a sentir febre e dores diversas no corpo. As mulheres escravizadas conseguem tratar e deixar ela bem, mas o pai, num arroubo de juízo resolve que deve cuidar da filha, chamando o médico Abrenuncio para vê-la. Este afirma que ainda não há com o que se preocupar e que o máximo que se podia fazer era dar uma boa qualidade de vida à menina, que ela não tinha nada que se pudesse identificar ainda. Porém, pelo fato de Sierva ter tido convulsões e de se comunicar através das línguas africanas que ela aprendera desde pequena, todos, com exceção do médico, começam a acreditar que ela estivesse sendo vítima de uma possessão e foi essa a história que se espalhou. Logo após o boato correr, o bispo chama o marquês e recomenda que ele interne sua filha no convento Santa Clara porque, pelo que ele ouviu sobre o estado da menina e pela convivência dela com os escravizados da casa grande, ela com certeza está com o demônio no corpo precisando ser exorcizada.
Nesse crossover de Lolita com O Exorcista, o autor vai abordar assuntos como a crença da Igreja Católica de que as religiões de matrizes africanas são diretamente associadas ao demônio, chamando os rituais inclusive de “feitiçarias dos negros”. Inclusive, o padre Cayetano DeLaura, encarregado do exorcismo, mas que é um dos poucos que duvidam da necessidade daquilo no caso da Sierva, tem uma das melhores falas em um diálogo com a abadessa, que toma conta do convento, em que ele diz: “Tome cuidado, às vezes atribuímos ao demônio certas coisas que não entendemos, sem cuidar que podem ser coisas que não entendemos de Deus.” Ou seja, o livro, mesmo que timidamente, tece críticas a respeito da conduta da Igreja Católica. Em outros pontos podemos perceber também como a instituição Católica e participantes eram bem egoístas, capazes de prejudicar vidas para não desmoronar com a aparência de detentora da moral que a Igreja em si ostenta.
A obra tem personagens extremamente racistas, principalmente pelo período colonizatório em que a história se passa, colocando os homens e mulheres escravizados, seus costumes, línguas e rituais como demoníaco, como se fossem animais irracionais, incapazes. Prova disso é a forma como o marquês, quando finalmente entra alguma consciência em seu cérebro, a menina já aos 12 anos de idade, se culpa por ter “abandonado à própria sorte [Sierva] no pátio dos escravos”, como se eles fossem selvagens e desconsiderando que tudo que a menina sabe e até a vida dela ela deve à esses escravos que ele tanto despreza. O padre DeLaura não escapa do olhar racista também, embora eu tenha sentido que de início ele era para ser o personagem que compreendia a situação da menina e era pra ser o olhar “ousado” dentro da Igreja, tem uma parte em que ele afirma que o fato da menina mentir por prazer era porque os negros são mentirosos e esse era um dos costumes que ela aprendeu com eles. Sendo este mesmo padre, o protagonista da naturalização da pedofilia no livro, confundindo essa prática, inclusive, com um dos “amores” do título da obra. O autor, inclusive, associa a cultura africana dos negros escravizados com o amor livre e à iniciação sexual precoce, o que eu acho ser extremamente problemático, vemos isso num trecho em que ele diz “ela [Sierva] convivia com todas as potências do amor livre na senzala dos escravos”, como se a condição dura e difícil que eles tinham nas senzalas fosse um verdadeiro bacanal.
Na minha concepção, esse foi um livro extremamente problemático de ler por todos os motivos supracitados e, principalmente nas cenas relacionadas à pedofilia, onde a menina, Sierva Maria, tem 13/14 anos e o padre com 37 anos. Então já deixo aqui meu alerta de gatilho pros que intentam fazer essa leitura. A impressão que eu tive foi de que só existe um personagem racional nesse livro, que é o médico Abrenuncio que, infelizmente, tem pouquíssima participação, mas que é um dos protagonistas de um diálogo perto do final com o padre DeLaura, onde ele afirma que houveram rumores de que ele abusou da menina, que do ponto de vista cristão os rumores estão corretos e pergunta se o padre não teme se condenar, ao passo que este responde: “Sempre acreditei que ele [Deus] leva em conta mais o amor do que a fé.” Essa fala me matou, porque o que ele chama de amor é o “romance” que ele acredita ter com uma criança, cujo desenrolar da história culmina num acontecimento relacionado à Sierva María em que o amor é a justificativa. Sobre esse livro, só posso dizer que fiquei extremamente chocada e insatisfeita em muitas partes, principalmente por se tratar de um autor que tem um livro que eu gosto muito (Cem Anos de Solidão) e que escreveu coisas absurdas nos níveis que relatei aqui. Me desculpem aos fãs do Gabo, mas esse não foi feito pra mim, 2 estrelas de 5.