Michele Duchamp 31/05/2021Michael Ende mostrou que o gênero fantasia é muito mais do que histórias kitsch de RPGSeria "A História sem Fim" um livro mágico, que nos transporta para um lugar com seres fantásticos, onde vivemos aventuras nunca vistas com personagens inesquecíveis?
“Na verdade, porém, ele é muito mais do que isso, ou melhor, é algo muito diferente.”
Quem tem por volta de 40 anos por certo se lembra do filme, que marcou a todos nós. Mas antes de iniciar a leitura, um aviso: deixe o filme no maravilhoso compartimento da nostalgia que todos nós possuímos e prepare-se para entrar em um local impossível de se supor que existe, porém, quando entramos, notamos que finalmente chegamos na síntese do que havíamos procurado a vida inteira.
Nas mãos de um escritor muito bom essa seria uma história de amizade e emoção, ação e heroísmo. Mas estamos falando de Michael Ende, cujo talento transcende qualquer palavra que eu possa descrever aqui. Eu diria que o mais próximo da definição desse livro seria “um divisor de águas”. Você é um antes de ler esse livro e é outro após concluir a leitura.
“Os pensamentos de Bastian regressaram contrariados à realidade. Sentia-se contente por a História Sem Fim nada ter a ver com esta realidade. Não gostava dos livros que, com mau humor e acidamente, narravam acontecimentos absolutamente vulgares, da vida absolutamente vulgar de pessoas absolutamente vulgares. Conhecia muito bem tudo isso da sua vida real, por isso não precisava ler essas coisas. Além disso, detestava quando queriam convencê-lo a fazer alguma coisa. E esses livros queriam sempre convencer as pessoas de alguma coisa, de uma maneira mais ou menos óbvia.”
Nada te prepara para ler Fantasia. Em cada frase, em cada acontecimento, Michael Ende coloca sua alma completa. E ele é a pessoa mais interessante que você vai encontrar. Por isso tudo nesse livro atrai, tudo interessa.
Na primeira parte, temos a já conhecida jornada de Atreiú para encontrar a cura para a Imperatriz Criança, com Bastian sendo - por enquanto - seu companheiro invisível. Os atos são mostrados no filme, mas aqui a história é narrada por alguém que entende do que está fazendo. Então finalmente pude verdadeiramente conhecer a história e me identificar com Bastian que, de um menino genérico sofrendo bullying, passa a ser alguém com personalidade própria e individual.
Mas é na segunda parte, a jornada de Bastian de volta para casa, que o escritor mostra porque uma coisa são os enlatados divertidos de Hollywood, outra é um homem solitário, no controle da sua criação literária, que pode se mostrar por completo sem restrições criativas.
“Bastian já não queria ser o maior, o mais forte ou o mais inteligente. Ultrapassara tudo isso. Aspirava agora a ser amado por aquilo que era, como era, bom ou mau, bonito ou feio, esperto ou estúpido, com todos os seus defeitos... ou precisamente por causa deles. Mas... como ele era? Já não sabia. Recebera tantas coisas em Fantasia que já não era capaz de se encontrar a si mesmo no meio de todos aqueles dons e qualidades.”
Contar detalhes estragaria a sua leitura, que deve ser feita descobrindo sozinho e paulatinamente esse mundo. Apenas preste atenção no capítulo “A Cidade dos Antigos Imperadores”, na minha opinião o melhor capítulo de todos os livros que já li.
“— Sabe, às vezes eu falo sozinho.
— E o que é que você fica falando?
— Imagino histórias, invento nomes e palavras que ainda não existem e outras coisas assim.
— E você conta essas coisas para você mesmo? Por quê?
— Porque não interessam a mais ninguém."