Alle_Marques 30/10/2022
A Terra é Boa... Mas não para todos
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“O presente é tudo aquilo que é palpável e sobre o que não temos dúvida. Uma vez que isso é a verdadeira vida, não se deve ser gasto tolamente. Deve ser saboreado em cada colher de alimento, em cada momento de sono, em cada gole de vinho, na hora do pôr do sol, na chuva que corre pelas montanhas, numa flor, num pássaro, no riso da criança, na companhia de um amigo, na alegria do amor. O tempo deve, acima de tudo, ser valorizado, esse precioso tempo que, quando gasto na pressa e no aborrecimento, é perdido. Cada momento de paz é mais precioso do que todas as riquezas, pois apenas na paz a vida pode ser plenamente saboreada. Assim, o bem é sabedoria, pois no mal não há paz, e a bondade é a sabedoria, pois não há paz no sofrimento, e o homem bom goza a vida como o mau não pode fazê-lo; no entanto, a bondade não deve ser imposta aos outros, pois a força em si mesma traz o sofrimento.”
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Foi uma das experiências de leitura mais imersivas e envolventes que eu já tive, e nesse aspecto não falha em nada, é tão bem feito e marcante quanto poderia ser e a história se desenrola tão suavemente que chega a ser prazeroso acompanhar o cotidiano dessas pessoas, e isso tudo feito de maneira chamativa, ambiciosa e intensa, sentimos na pele o que os personagens sentem, seus medos, seus desejos, seus apegos, suas vidas e seus modos se tornam tão naturais a nós como se fossem nossos vizinhos, nosso passado, porém após o termina da leitura todos esses prós teimaram em se tornar contras e fiquei com o receio que tudo não passou de uma armadilha, uma sutil, inconsciente e tentadora armadilha, mas ainda assim, uma armadilha.
Nem todas as qualidades foram capazes de relevar a quantidade absurda de passagens e situações problemáticas presentes na obra, que vão desde a misoginia, machismo e sexismo, passando por abusos físicos, sexuais e mentais, e indo até o capacitismo e a pedofilia. A princípio, entendi que era tudo uma grande e discreta, em alguns momentos apenas, crítica da Pearl S. Buck ao estilo de vida chinês da época, e que a autora havia apenas falhado nessa crítica e caído no clichê de “criticar algo mostrando algo e torcer para que isso sozinho fizesse o efeito desejado” – coisa que não é verdade e muito menos realista, além de também ser uma forma de “critica” bem problemática e facilmente distorcida quando são feitas pelas mãos erradas –, mas foi só avançar um pouco mais na leitura pra ficar claro que eu estava enganada: sua intenção nunca foi a de criticar, apenas a de relatar. E é justamente a falta dessa tão necessária critica, somada a romantização extrema feita pela autora, que torna a obra tão problemática quanto ela é, afinal, não é porque uma coisa aconteceu ou acontecia de tal forma que isso seja motivo suficiente para fechar os olhos e aceitar tudo passivamente, não é porque algo já foi tratado como normal, padrão ou comum que aquilo tenha realmente sido correto, justificável e decente, e por esses motivos se deve ter um extremo cuidado na hora de tentar falar sobre alguma coisa, alguma época, algum período, nunca foi normal chamar mulheres de escrava, isso apenas foi normalizado em alguma época em algum lugar, nunca foi normal casar com crianças e adolescentes, isso apenas foi normalizado em alguma época em algum lugar, nunca foi normal mulheres e meninas serem propriedade dos homens da família, muito menos que poderiam ser vendidas como objetos para outros homens, isso apenas foi normalizado em alguma época em algum lugar, nunca foi normal um ser humano ser dono de outro, isso apenas foi normalizado em alguma época em algum lugar, entende?! Há uma diferença gritante entre ser fiel aos fatos e banalizar eles, não é porque tal coisa aconteceu de tal forma em tal época que para ser fiel aquilo você seja obrigado a retratar tudo cegamente e de forma inconsequente, é extremamente possível ser fiel a algo, a um período, uma época, um costume, um povo, sem normalizar e banalizar o que está acontecendo ou aconteceu ali, e é extremamente possível e esperado ser fiel aos fatos, e até mesmo gostar de algo, sem romantizar esses fatos ou esse algo de maneira imprudente como a autora faz da primeira à última página, nas mais diversas situações e, aparentemente, sem consciência nenhuma disso, e digo “aparentemente” porque imagino que está mais do que obvio para quem, assim como eu, leu o prefacio da obra presente na edição da Editora Abril, que a admiração cega da Pearl por esse povo foi mais do que suficiente para a tornar totalmente parcial a favor deles e de seu passado não tão tolerável e legal assim, embora seja claro também que o mundo já tão problemático que a autora cresceu – final do século XIX e início do XX –, também tenham tido grande influência sobre ela e sua maneira de ver o mundo, ainda que nada disso realmente justifique os fatos.
Outra coisa importante e absurda que me chamou a atenção foi em ver como ela foi bem sucedida em normalizar e banalizar essas coisas, tanto que a grande maioria dos leitores que vi, ou não perceberam, ou escolheram não perceber ou simplesmente aceitaram docilmente tudo o que a autora quis passar, sem notar a gigantesca romantização de coisas horrendas que aconteceram ali e para piorar, ainda tentaram justificar esses absurdos, esse é o caso dos leitores sem um pingo de julgamento crítico na hora de ter uma opinião própria, aposto, mas por fim, em ambos os casos, são situações para serem repensadas, até porque, não estamos mais no século XX e muito menos no XIX, com tanto acesso a informação disponível por aí, não existe mais desculpa e nem espaço para coisas assim, não é algo que dá pra ser relevado, não é algo que dá pra ser esquecido e não é algo que dá pra ser deixado de lado, não dá e NÃO DEVE, as pessoas precisam aprender a parar de "passar pano" para as coisas apenas por gostarem delas, gostou de algo? Ótimo, seu direito, mas encare os problemas assim como encara as coisas boas. Não gostou de algo? Ótimo, seu direito, mas encare as coisas boas assim como encara os problemas. É simples.
Se não fosse por isso, por TUDO isso, com certeza teria entrado na minha lista de favoritos, tem tudo o que eu mais gosto em um livro: imersão, boa escrita, personagens complexos, cheios de camadas e nuances, ambientes que mais parecem personagens a parte e sagas familiares que atravessam os anos e passam por gerações. Uma pena. É, realmente, eu não comparei a obra com uma tentadora armadilha à toa.
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[...] – Nunca venderei as terras! – gritou para eles – Torrão a torrão, arrancá-la-ei para dá-la a comer a meus filhos, e, quando morrerem, enterrá-los-ei na terra, e eu e minha mulher e meu velho pai, até mesmo ele, morreremos na terra que nos deu o berço! [...]
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