Luigi.Schinzari 10/03/2021
Sobre A Dama do Cachorrinho e outros contos de Tchekhov:
Costumo ter um grande apreço pelo banal, pelos acontecimentos transcorridos ao nosso redor e que, de tão comuns, tão rotineiros, nem percebemos o potencial de vida, a verdade contida naqueles momentos. Está justamente nesse fator -- o banal, o cotidiano monótono -- o motivo da arte, seja literatura ou outra qualquer, ter suas bases no épico, no clímax de guerras catárticas, em epopeias heroicas contendo, muitas vezes, narrativas que simplesmente moldaram nossa cultura e a história ocidental, o contraponto a vida do dia-a-dia, do homem comum, das relações desenvolvidas sem maiores tragédias ou reflexivos questionamentos filosóficos. Nos contos do russo Anton Pávlovitch Tchekhov (1860-1904) encontramos, delicadamente, um contraste natural às grandes obras grandiloquentes: o autor calca suas tramas na base do povo russo, posicionando sua câmera nas janelas das casas, nas portas dos consultórios médicos -- tendo o próprio Tchekhov juramentado a Hipócrates e exercendo a profissão paralelamente a de literato. -- Em resumo, poucos foram os autores que trabalharam o cotidiano e extraíram o máximo dessas situações comuns, com tanta simplicidade quanto brilhantismo, quanto Tchekhov conseguiu em seus contos.
De escrita, aparentemente, simples, percebe-se que sua adjetivação moderada é utilizada nos momentos certos, visando denotar traços necessários para suas construções no tempo preciso para a narrativa fluir como planejado. Assim como um titereiro, Tchekhov domina cada fio de sua trama do modo como deseja, conduzindo suas histórias com, aparentemente, um controle sobre o todo: conhece tão bem o que quer contar, toda sua estrutura, que consegue condensar em uma curta narrativa de poucas páginas uma história, com toda a densidade presa à ela, sem deixar escapar nem uma palavra sequer, que outros autores (de não menor qualidade por isso, mas apenas trazendo esse fato) fariam um romance de dezenas de capítulos para contá-la com a mesma qualidade e profundidade trazida por Tchekhov.
Abordando, como dito anteriormente, em sua maioria, tramas comuns, Tchekhov consegue desenvolver de forma prática muito justamente com o pouco. Suas maiores tramas escapam das páginas -- com recursos utilizados pelo autor como lapsos temporais enormes e fins sem conclusões -- e fixam-se na mente do leitor pelo não contado, pelo implícito, livres para o interlocutor criar a ligação entre um parágrafo e outro (por vezes, separados por anos), e pensar que fim levou aquele casal de A Dama do Cachorrinho (1899), aquele homem, aquele jovem do conto Volódia (1887) e tantos outros dessa gama infinita de russos, um grande panorama de sua Rússia pré-revolucionária, de sua intelligentsia jovem, criada pelos autores e pensadores de sua época, com seus costumes petulantes, assim como de suas classes mais baixas, o assalariado russo, o homem do campo e sua vida bucólica -- são muitas as Rússias de Tchekhov, compondo um preciso quadro, com sua simplicidade realista e diversidade de contos, uma única e crua Rússia.
Está em sua simplicidade, sem arroubos de lirismo excessivo, que sua grandeza reluz, em seus diálogos realistas, em suas personagens contraditórias, em suas posturas hesitantes: é humano até demais, e parece tão natural à sua escrita essas características que beiram o simplório àqueles mais desatentos, mas é nisso que reside sua qualidade maior e o porquê de seu nome destacar-se em meio aos grandes que o influenciaram (sendo Tchekhov de uma geração posterior a Dostoiévski, Tolstói e Turguêniev, por exemplo), tendo mesmo Tolstói, uma de suas maiores inspirações e devoções, como um admirador de seus contos justamente por sua simplicidade ao contar tão verdadeiramente os causos russos e, deixando o regionalismo de lado, os laços humanos -- os verdadeiros laços humanos: cotidiano, sem quedas e ascensões dramáticas, mas contendo, em cada situação, um peso diferente de pessoa para pessoa, cada um com suas preocupações, com seus problemas, suas próprias felicidades e convicções, fortes ou defasadas, ou mesmo não as tendo; os conflitos internos e externos, com nossos desafetos por motivos fúteis -- os contos de Tchekhov são reais demais, e sua simplicidade, por mais paradoxal que possa soar, é de uma complexidade tão grande que explica o porquê do autor habitar o patamar dos grandes escritores de nosso cânone mundial.