Dhiego Morais 01/11/2017A Zona MortaAlgumas histórias têm poder suficiente para não apenas nos fazer imergir em suas páginas, mas também para nos arrebatar enquanto lemos. Outras poucas histórias possuem o efeito singular de, ao virar a última página, simular o efeito de calmaria ou inércia, mas basta que retornemos algumas folhas que esse efeito se esvai, a ilusão se quebra como vidro e então afundamos abruptamente. O leitor é pego na armadilha. As emoções borbulham. Só há compreensão e satisfação.
A Zona Morta, livro escrito no final da década de 70 é uma das obras mais aclamadas de Stephen King, indicada, inclusive, para o Locus Award (1980) e adaptada para os telões em 1983 por David Cronenberg, contando com Christopher Walken no elenco.
A história gira em torno de John Smith, um jovem professor de colégio apaixonado por Sarah, também professora. Ainda quando criança, a Roda da Fortuna girou pela primeira vez para Johnny, quando ele se acidentou patinando, em janeiro de 1953. A Roda está sempre girando, e a sorte parece ter uma preferência. Mas há um preço e uma consequência.
“Os olhos eram os de alguém que tinha acabado de ver algo terrível se movendo, se esgueirando nas sombras, algo terrível demais para ser descrito ou sequer nomeado”.
Anos depois de seu acidente juvenil, as lembranças já se misturam e tudo parece menos importante e bastante enevoado. Foi durante a feira de Fryeburg, em espírito de Halloween, que a sorte mudou mais uma vez. Jogando na Roda da Fortuna, um jogo em que ganhava quem acertasse o número em que o disco pararia, Johnny misteriosamente parecia saber todos os números. Algo em sua cabeça acionava, um clique, e a sensação de certeza, de premonição surgia. Sarah passa mal durante a diversão — malditos cachorros-quentes! — e John a leva para casa, dirigindo o veículo da namorada. Com a noite um pouco estranha, ele decide deixá-la repousar e pega um taxi para a própria casa. E então a Roda gira outra vez. A sorte é da Casa. Johnny sofre um acidente.
O resultado de tudo isso são quase cinco anos de coma. Quando John Smith consegue retornar à consciência, os seus membros haviam atrofiado, o mundo havia mudado e a sua vida já não era a mesma. O acidente tomara muito mais que a sua saúde, mas também o presenteou com algo poderoso: com apenas um toque, Johnny é capaz de saber o passado ou o futuro das pessoas. Basta um toque e ele descobre mais do que jamais desejou. Para alguns, um dom abençoado, entretanto, para John, um poder demasiado sinistro.
“Todos nós fazemos o que podemos, e isso tem de ser o bastante... e se não é bom o bastante, temos de continuar fazendo. Nada jamais é perdido, Sarah. Não há nada que não possa ser encontrado”.
King mais uma vez entrega uma história extremamente fluida, cuja trama atrai magneticamente o leitor para as suas páginas. A narrativa é cheia de tensão e em certos momentos é capaz de hipnotizar, conforme a sua imersão no livro. A Zona Morta possui uma escrita deliciosa, evidenciando Stephen King em sua melhor forma.
Além da história, o que torna A Zona Morta tão interessante e agradável de ler é as suas personagens. King constrói personagens assustadoramente fiéis, com personalidades e psicológico extremamente críveis, embora haja um clima pincelado por elementos do sobrenatural, da fantasia e ficção científica. Dificilmente o leitor deixará de nutrir uma empatia profunda por Johnny Smith, ou consternação, compaixão por Sarah, de tão ricamente caracterizados pelo autor. Da mesma forma, Greg Stillson deverá ser capaz de estimular outros sentimentos ainda no início do lvro.
A ambientação — Castle Rock — é mais um ponto positivo a ser dito, assim como na maioria das obras do autor. Não é por menos que os seus livros costumam ser longos, já que King tem preferência em trabalhar sem pressa toda a ambientação e suas subtramas. O resultado é normalmente um livro denso, completo, dotado de uma facilidade tremenda em imergir o leitor na história. A Zona Morta não é prolixa ou cansativa, pois King aposta em uma história dentro da outra, o que confere fluidez e tensão à trama.
Terminei o livro com a sensação de que algo havia me escapado. Não conseguia dizer se eu havia gostado muito ou simplesmente gostado. Refleti durante certo tempo e então decidi pegá-lo e reler as últimas páginas. À medida que eu relia, assimilava as informações e as conectava com o início da história, e, admito, King mais uma vez conseguiu me emocionar.
“Não. Matar só faz nascerem novos dentes no dragão. É no que acredito. É no que acredito de todo o coração”.
Com um final que em um primeiro momento parece ser simples demais — mas não é; por isso uma releitura das últimas páginas é interessante —, King entrega uma obra tensa e atraente, com personagens profundos, poderosos e bem articulados. O Destino e a Sorte são peças importantes na trama, enquanto desenham um passado e um futuro frágeis como teias de aranha.
A Zona Morta, onde todas as coisas estão perdidas e a Sorte é trágica. Trata-se de um livro sobre até onde estamos dispostos a ir quando temos conhecimento dos segredos que antes eram ocultos, dos pesadelos que chafurdam no passado dos homens e do inferno que toma forma no futuro.
A Roda da Fortuna está sempre girando, girando e girando. Sorte e azar são irmãos. Quanto você está disposto a arriscar?
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