spoiler visualizarVivian Nakashima 04/10/2021
O que é lugar de fala?
Djamila Taís Ribeiro dos Santos é uma teórica do feminismo negro que vêm ganhando cada vez mais força e reconhecimento em seus trabalhos, e não à toa. Formada em Filosofia Política pela USP (Universidade Federal de São Paulo), ela disserta ativamente sobre questões de gênero e raça, trazendo sempre diversas perspectivas históricas, filosóficas e sociológicas em suas produções. Com uma perspectiva extremamente ampla sobre a estratificação do racismo e sexismo na contemporaneidade ? e como ele se deriva de fatos anteriores ao século XXI ? ela convida a pensar e refletir sobre a posição que ocupamos na sociedade e qual é o nosso dever, enquanto cidadãos.
Especificamente em ??O que é Lugar de Fala??? da Coleção Feminismos Plurais, coordenada pela própria, ela descreve, com absoluta precisão a maneira como os moldes coloniais da sociedade criaram um sistema que invisibiliza mulheres negras, suas produções intelectuais e demandas; que, acima de tudo, cria um abismo social evidenciado ainda, pela própria deturpação da ideia de feminismo, que já decorre desde os seus primórdios. Em pouquíssimas páginas, ela faz uma análise extremamente concisa sobre porquê pensar o feminismo negro como manutenção da interseccionalidade, e não sua dissociação do movimento. Suas ideias e são primordiais para dar a mulheres negras o tão famigerado lugar de fala e garantir a isonomia de políticas públicas de maneira real, não apenas em detrimento de um grupo específico.
Ao longo do texto, essa tese é sustentada por três argumentos: Um histórico, um sociológico/filosófico, e um que combina os dois para criar uma perspectiva do que seria lugar de fala, vale ressaltar que nenhum argumento é 100% intercalado com apenas uma área de conhecimento, essa divisão é apenas ilustrativa. O primeiro capítulo é uma contextualização histórica referente à disparidade racial histórica nas Américas, como essa ferida é sentida pelas mulheres negras com maior intensidade e o fato infeliz de que essa desconsideração é, quase sempre, ignorada até mesmo pelo próprio movimento feminista. Através da análise de um poema da ativista do movimento feminista negro, Sojourner Truth, ela compara a distância entre as mulheres brancas e negras. Essa perspectiva histórica também pode ser observada no trabalho da pensadora afro-americana bell hooks, que vai contra a ideia de uma história feminista única.
??Mesmo que mulheres negras individuais fossem ativas no movimento feminista contemporâneo desde seu início, elas não foram os indivíduos que se tornaram ??estrelas?? do movimento, que atraíam atenção da mídia de massa. Muitas vezes, essas mulheres negras ativistas do movimento feminista eram feministas revolucionárias (como várias lésbicas brancas). Elas já discordavam de feministas reformistas que estavam decididas a projetar a noção do movimento como ele fosse, exclusivamente, pela igualdade entre mulheres e homens no sistema existente. Mesmo antes de raça se tornar uma questão debatida nos círculos feministas, estava claro para as mulheres negras (e para as revolucionárias aliadas da luta) que jamais alcançariam igualdade dentro do patriarcado capitalista de supremacia branca existente.?? (HOOKS, BELL ? O feminismo é para todo mundo; Rosa dos Tempos: 2000; p. 4).
Desse contexto de desnivelamento e, sobretudo silenciamento das vozes e produções intelectuais de mulheres negras, procede o segundo argumento, pautado, especialmente na contraposição entre a perspectiva de outro beauvoiriana e a da pensadora portuguesa contemporânea Grada Kilomba. Isso porque, na visão de Simone de Beauvoir, as mulheres são enxergadas, na sociedade patriarcal como acessórios do homem, um objeto em posição de subserviência. Mas esse conceito se refere a um grupo bem específico de mulheres: As brancas. Para Kilomba, as mulheres negras são o Outro do Outro, não têm garantia de direitos algum e são desprezadas por todo o corpo social, mesmo pelas próprias mulheres. É inclusive uma das pautas de reflexão do livro ??A Paixão Segundo G.H.??, em que a protagonista, ao se dirigir ao quarto de sua ex-funcionária doméstica, que ela demitira recentemente, percebe um desenho na parede, que ela concluiu ser uma expressão de todo o ódio que a funcionária sentia dela, mas após algumas epifanias ela percebe que o verdadeiro ódio não era o empregada pela patroa, e sim da patroa, que o manifestava do jeito mais doloroso possível: A indiferença. Foi através da indiferença ao que mulheres negras tinham e têm a dizer, que contribuímos para a construção de um corpo social e movimento feminista excludentes.
O último argumento se mune de tudo isso para formular a pergunta e oferecer uma visão sobre ela: O que é lugar de fala? Na era do cancelamento digital, a palavra ganhou um significado raso que, quase como um semáforo, dita às pessoas sobre o que devem ou não opinar. Mas lugar de fala não têm a ver com a permissão para falar, e sim com a falta de validação do que se fala e que grupos possuem o privilégio dessa validação. É uma pirâmide na qual homens brancos detém o maior lugar de fala, e mulheres negras o menor. Nessa lógica, lugar de fala têm um conceito muito mais abrangente, que pode e deve dar voz a grupos históricamente invisibilizados ou lesados e ser utilizado para a edificação de uma sociedade mais justa e igualitária.
Em suma, o que Djamila Ribeiro traz, além do questionamento que dá título ao livro, outros não menos importantes e que são concisamente respondidos ao longo do texto. Quem o lugar de fala privilegia? E por quê mulheres negras são as que mais precisam dele? O que as coloca em posição de invisibilidade e vulnerabilidade social? Por quê precisamos do feminismo negro? É uma análise muito cirúrgica da história e sociedade americanas e sua pressão esmagadora sobre mulheres negras, em especial.