Dhiego Morais
05/08/2018Conan #1O horizonte é tempestuoso e raios singram o céu com fúria incalculável. O Caos cavalga em animais enfurecidos, enquanto não se distingue som algum, exceto pelos gritos de fúria e de dor. Um golpe recente ainda ressoa pelo elmo de chifre; parte da sua audição se perdeu momentaneamente. No entanto, a fúria, ah, sim, a fúria da batalha ainda ressoa vividamente entre sua pele e seus ossos. O machado risca o ar e o sangue espirra. O mesmo machado corta em outra direção, com um urro, e a cabeça adiante rola no campo. Impiedosamente, dotado de tudo, menos do medo, o selvagem cimério escala o monte de corpos inertes aos seus pés e ergue o machado novamente, como se ofertasse aos deuses: há um brilho azul nos olhos e uma confiança indubitavelmente bárbara. Você é Conan!
Em janeiro eu pude ter a experiência de ler H. P. Lovecraft, em uma edição bastante caprichada da Darkside Books: Lovecraft: Medo Clássico Vol. 1. Depois de concluir a leitura e concluir que havia adorado a mente cósmica por trás de tantas histórias, li sobre a relação de amizade entre o autor e outra grande figura do século XIX, tremendamente respeitado e idolatrado por suas criações: era Robert E. Howard, o pai de Conan, Solomon Kane, Kull e Red Sonja. Aproveitando-me de minha promessa relacionada a ler mais autores e autoras representativos, plurais, fora do eixo EUA-Europa e, claro, alguns clássicos da fantasia, aproveitei para inserir na meta do ano a leitura de Conan, o meu primeiro contato com a figura icônica do bárbaro na literatura. E o fato é que eu gostei bastante!
“Eu sou um bárbaro, então devo vender meu reino e seu povo em troca da minha vida e do seu ouro imundo?”
Conan, o Bárbaro: Livro 1 é uma edição especial da editora Pipoca & Nanquim, em acabamento de luxo e com tradução de Alexandre Callari, contendo em ordem cronológica de publicação as obras do renomado Robert E. Howard. Trata-se de uma experiência praticamente irrecusável, com conteúdo extra muito bem-vindo, além de ilustrações entre os capítulos e dotado com as capas originais da revista Weird Tales, lançadas na década de 30.
Conan é uma das figuras mais conhecidas e cultuadas do meio nerd há bastante tempo. Percorrendo desde os romances originais, até o cinema, os jogos para console, as action figures; bem como influenciando outras obras e formatos da tão conhecida Espada & Feitiçaria, Conan é uma espécie de elo que liga o realismo à fantasia contemporânea, em uma tessitura tão firme e apreciada que se mantém em alta mesmo após tantas transformações da literatura.
Com uma história rica e complexa, Conan atravessa uma série de fases durante a vida, de nascido em campo de batalha, passando por um bárbaro acumulador de vitórias até sagrar-se líder e rei. Howard soube abrir um leque muito flexível para a personagem, possibilitando uma fonte de histórias quase inesgotável.
“O velho feiticeiro levantou-se e encarou seu perseguidor, os olhos iguais àqueles de uma serpente furiosa, o rosto, uma máscara inumana. Em cada mão ele trazia algo cintilante e Conan sabia ser a morte o que ele segurava.”
Nesta edição, o leitor se depara com as seguintes histórias: A Fênix na Espada, A Cidadela Escarlate, A Torre do Elefante, O Colosso Negro, Xuthal do Crepúsculo e O Poço Macabro. Além disso, encontram-se nos extras: o poema Ciméria, um texto sobre a Era Hiboriana, uma biografia do autor e um conto póstumo, O Deus na Urna. A seguir, como qualquer antologia resenhada por aqui, cito os textos que mais me agradaram:
- A Cidadela Escarlate: talvez a minha história preferida do livro, aqui nós encontramos um Conan já rei, com sua base de poder relativamente cimentada. Em meio a um ardil, Conan tem o seu exército desbaratado por forças inimigas e, capturado, é levado até a capital dos domínios de Strabonus, Khorshemish, onde a fortaleza imponente de seu mago, Tsotha-lanti, um ser antigo, maligno e igualmente misterioso habita. Em meio a intrigas pelo poder e muita ação, Robert E. Howard constrói uma história fantástica, bem narrada e recheada de magia e batalhas muito bem escritas. O final é recompensador!
- A Torre do Elefante: a Marreta, onde as tochas reluziam lúgubres na festança. Aqui o leitor encontra um Conan mais jovem, mais impetuoso, dedicado aos roubos. Howard apresenta um novo cenário de seu mundo amplo e realista, uma Zamora cheia de becos, suja, viciosa, perigosa, em que Conan deve provar ser capaz de se infiltrar no covil de Yara, o sacerdote que governa a Torre do Elefante, uma espécie de antro místico impenetrável, responsável por guardar uma série de joias preciosas, entre elas uma ainda mais singular e secreta: o Coração do Elefante. Apesar de não ser a história mais longa do livro, trata-se de uma das mais bacanas, com boa mitologia e uma narrativa que em certos momentos me lembrou de Lovecraft. Além disso, a Torre do Elefante ainda possui um dos primeiros capítulos mais animados da antologia. Vale muito a pena!
- O Deus na Urna: uma das primeiras histórias de Conan escrito por Robert E. Howard e somente publicada muitos anos depois de sua morte, O Deus na Urna resgata um bárbaro que ainda leva a sua vida como ladrão. Dessa vez, encontrado por um dos guardas de um ilustre nobre recém-assassinado, em meio a sua tentativa de roubo, Conan deve provar sua inocência a fim de escapar de ser condenado à morte — ainda que tente lutar. Envolvendo um artigo misterioso, o conto é recheado de certa tensão e resgata a sensação dos antigos filmes cujo cenário é o Egito e sua mitologia e cultura. Bem interessante, de fato!
“Mas o rosto era inumano; cada linha, cada característica era gravada pelo mal... um mal que transcendia a maldade dos seres humanos. A coisa não era humana; não podia ser.”
A escrita de Howard é bastante agradável, bem mais fluida que a de seu amigo, Lovecraft, com quem se correspondeu várias vezes, antes de ter a carreira encerrada abruptamente ao se suicidar.
Conan é um marco na literatura de fantasia, um verdadeiro clássico da espada e feitiçaria, imbuído de uma essência que dificilmente envelhece. Apesar de possuir certos problemas ideológicos relacionados a gênero, etnia e características fenotípicas, parte disso relacionada com a época em que o autor viveu, não há como descartar a importância cultural e literária de uma obra tão rica e abrangente. O leitor que se compromete a ler Conan tem a oportunidade de ver o nascimento de uma lenda, bem como de um dos pilares de um gênero que se reproduziria ostensivamente anos mais tarde, solidificando-se como uma das principais fontes de heróis de capa e espada da literatura.
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