Renata 05/12/2020
Violência é uma quarta-feira na vida de mulheres e minorias sexuais. Sendo parte do normal, logicamente muito do nosso trabalho tem como foco mostrar como essa rotina é violenta. Criamos e incentivamos o uso de categorias, termos e conceitos pra isso: feminicídio, mansplaining, gaslighting, machismo, silenciamento, invisibilização. Precisamos dessas palavras vivas e incorporadas ao vocabulário do debate público porque isso é basilar pra elaboração das nossas experiências. Precisamos diferenciar sexo de estupro. Precisamos diferenciar flerte de assédio. Essas coisas têm que existir em separado pra que nós possamos ter uma vida sexual comum, pra que possamos flertar e viver sem medo. Pra superar o medo, temos que forçar mudanças no caminho de eliminar as origens dessas violências. É por isso que linguagem e política muitas vezes se tornam sinônimos.
O efeito colateral do uso amplo desses termos é sua banalização. Não só por misoginia, mas porque as vidas das mulheres são tão amplamente perpassadas por isso que é comum ser difícil de apreender o tamanho disso. Naturalmente é impossível que tanta violência aconteça o tempo todo, né? Há exagero em algum lugar.
Essa dessensibilização é como um retorno ao status quo, ao equilíbrio, após um impacto. No caso, sempre se acha um jeito de naturalizar a violência contra mulheres: ou não existe, ou não existe tanto assim.
Como, então, fazer com que essas violências não percam seu efeito desestabilizante? Como falar de estupro, de misoginia, de machismo, enquanto limites duros à existência das mulheres sem perder a dimensão de sofrimento individual de cada mulher que sofre cada ato desse tipo?
Para mim, ficção realista encontra os seus limites aqui. É aqui que a literatura como esta da Carmen Maria Machado brilha. Existe um quê rastejante e intangível quando seu namorado te diz que você é fácil. Existe uma floresta estranha em torno de um lago inexplorado quando você leva dois tapas. Existe uma fita que você usa desde sempre que é puxada de você quando você é publicamente atacada por um insulto machista.
Este livro brilha, pra mim, por isso. Você pode ler como discussão feminista densa e/ou como histórias estranhas e é incrível das duas formas.
E, como sempre, ele me relembra outra coisa: é extremamente refrescante ler histórias de pontos de vista de mulheres tratados como natural. É uma mulher escrevendo e narrando, ponto. Não há a sensação de que a autora está vendendo isso, logo, fazendo de maneira superficial; é uma mulher escrevendo e ponto. O ponto de vista masculino não é universal.
P.S.: Essa edição da Editora Planeta que tenho é linda demais. Capa dura, cores lindas, com as laterais das folhas negras. Fica lindo na estante e pra ler no transporte público.