Disotelo 30/08/2021Uma Alegoria Atravessa os SéculosFiquei muito encantado quando vi o Hamlet do Laurence Olivier e gostei tbm da versão integral do Keneth Branagh, por isso tinha altas expectativas da leitura.
A experiência da leitura em si não foi das mais agradáveis, essa peça segue a regra; é muito mais interessante encenada do que como objeto de uma leitura casual, teria sido mais interessante ler uma versão com notas de rodapé ou realizar uma leitura coletiva, a linguagem é um pouco difícil, especialmente na tradução a qual eu tive acesso.
Fora isso, existe uma característica inegavelmente alegórica na obra, sem a qual, creio, ela não pode ser devidamente apreciada, algumas alegorias me escaparam, outras me impressionaram. Eis a minha interpretação pessoal:
1-O enredo fala sobre os nossos impasses diante das farsas que nos são impostas pelas instituições e pessoas; o adepto de uma religião que percebe que os dogmas nos quais ele acreditava são furados, o militante político que descobre que seu político estimado está traindo a causa, o empregado que descobre que a empresa pra qual trabalha tem negócios ilegais, o policial que descobre que seu superior foi subornado, o filho que descobre que o pai está traindo e enganando a sua mãe, em todas essas questões surge o ser ou não ser, o absurdo e a possibilidade de revolta.
2-O fantasma representa a percepção da farsa
3- O novo rei simboliza o agente da farsa
4-A rainha é o tipo de pessoa mais comum no mundo, àquela que faz vista grossa pra não se comprometer.
5- O personagem Hamlet, a pessoa que aceita todas as consequências do combate à farsa, mas é também o agente que, se envolve tanto na luta contra a farsa que acaba excedendo toda o limite razoável, a ponto de prejudicar pessoas inocentes.
6-Polonio é a pessoa submissa que é prejudicada pelo ato de sua submissão.
7- Ofelia nos traz os efeitos colaterais, a pessoa que nem sequer estava envolvida na disputa mas é prejudicada por ela
8- Laertes é o tal do idiota útil, a pessoa ressentida que teve o ressentimento manipulado pelas instituições ou agentes que disputam o poder e, por isso, está disposta a destruir o agente bem-intencionado, quando ele perceber que foi enganada, o estrago já estará feito.
9- O final, o típico morre-geral que costuma encerrar as peças do Shakespeare, que aqui me faz lembrar o final de outro grande clássico, o grande épico indiano, o "Mahabharatha", onde há uma guerra entre parentes, envolvendo a sucessão real, que termina com a morte de quase todos os personagens mais importantes, e um remanescente neutro, essencial ao porvir, no caso do Mahabharatha seria o filho de Arjuna,
10-Em Hamlet o remanescente é Horacio, ele é a consciência que sobrevive a luta e fica como legado pras próximas gerações.
Talvez a peça trouxesse consigo, consciente ou inconscientemente, o desejo de Shakespeare de denunciar injustiças de sua época, como se no trecho onde a morte do Gonzaga(trecho aonde Halmet faz o rei assistir uma encenação de seu próprio crime oculto) é apresentada a corte ele nos sussurrasse "sei de certas coisas sobre as quais eu não ouso falar abertamente, eu não sou louco como o meu personagem", não sei de elementos biográficos que neguem ou ratifiquem essa suspeita.
Embora a forma de Hamlet possa ser um tanto datada, seus significados ainda são profundamente atuais, e continuaram sendo por muito tempo.