Coruja 10/06/2020Li esse livro pela primeira vez quando ainda estava na faculdade, acho que logo na época em que ele foi publicado por aqui. Não sei dizer exatamente o que me fez ir atrás do Saramago ou desse título - desconfio que tenha sido por indicação de alguém (talvez a Régis que é muito fã do autor?) -, mas lembro de ter brigado bastante no início com o estilo “estou nem aí para pontuações” do Saramago, mas persistido por achar a história fascinante.
Curioso é que, antes de iniciar minha releitura, eu poderia jurar que sabia tudo do enredo. Não demorei a descobrir, contudo, que minha memória me pregara uma peça e nada do que eu achava me lembrar acontecia ou então o que eu acreditava ser a causa de tudo era na verdade um efeito. Em outras palavras, foi como pegar esse livro para ler pela primeira vez. Exceto pela parte do estilo, porque, de fato, Saramago é inconfundível e inesquecível em sua recusa a usar estruturas linguísticas consagradas. Lê-lo em voz alta, seguindo a (falta de) pontuação exata é um desafio.
Não nego, eu saí colocando vírgulas e marcações de diálogo na minha edição. Sei que Saramago tem suas razões, que a dificuldade inicial vale à pena, e sua desconstrução da língua faz parte do seu charme, mas necessito de vírgulas e travessões, certo?
“No dia seguinte ninguém morreu” - é com essa frase que se inicia As Intermitências da Morte. Ninguém sabe o que causou o estranho acontecimento: fato é que, nas fronteiras do país, durante sete meses, ninguém morre, mesmo quando seria clinicamente impossível permanecer vivo. À primeira vista, um lugar em que ninguém morre pode parecer idílico, um presente divino, mas a suposta imortalidade se prova bem mais problemática do que se imaginaria.
A previdência social caminha a passos largos para a falência: hospitais e lares de idosos se veem às voltas com a superlotação; famílias tentam lidar com os cuidados que devem ser dispensados a seus entes queridos (ou não), muitos presos num limbo de dor e sofrimento; empresas funerárias se desesperam. O governo embarca numa grande campanha de propaganda sobre os deveres da sociedade para com esses moribundos, vivos-quase-mortos, enquanto por baixo dos panos negocia com a máphia (sim, com “ph”) um contrabando de pacientes para os países fronteiriços - onde se continua a morrer normalmente.
Com exceção de uma família de agricultores quase no começo do livro, quase não vemos o impacto individual trágico da suspensão da morte: Saramago concentra toda a nossa atenção no coletivo, ao ponto de nenhum personagem ter nome próprio, todos chamados pela sua função. O cardeal, o primeiro-ministro, o rei, o diretor de televisão, os vigilantes, o presidente da associação funerária, e assim por diante. Ao trazer o foco da estória para o macro, ele constrói um romance que poderia se esperar bem doloroso numa sátira ferina, hilária em partes, incômoda boa parte do tempo.
Mas, vejam só, As Intermitências da Morte é algo como dois contos em um. Ao longo de toda a primeira metade observamos como a sociedade interage com a morte como um fenômeno natural (ou não natural, no caso de sua ausência). Na segunda metade, a morte (e ela faz questão de frisar que deve se escrever com letra minúscula) entra em cena como uma entidade antropomórfica, explicando o motivo de sua paralisação como uma espécie de experimento para a humanidade, que sempre maldiz seu nome. Não apenas isso: ela decide modificar seu procedimento padrão, enviando cartas para aqueles que estão em sua lista, avisando-os que seu tempo termina em sete dias.
Supostamente, a morte deseja dar tempo para que seus clientes coloquem seus negócios em dia. O resultado não é bem o que ela tinha em mente, mas isso é deixado de lado quando uma de suas cartas retornam misteriosamente ao remetente e ela descobre uma falha em seu sistema, algo que a levará a conhecer e se apaixonar pelo violoncelista.
As Intermitências da Morte é um livro engenhoso, lúcido, surpreendente, criativo. Saramago o publicou aos 83 anos, já com uma extensa bibliografia atrás de si, algo que certamente põe em perspectiva aqueles dias em que reclamamos da vida, da idade, do trabalho… É, enfim, um livro de muitos significados, cíclico, de crítica e consolo, de riso e lágrimas. Foi um daqueles volumes que vim a (re)encontrar na hora certa e que tinha algo a me dizer pessoalmente: comecei essa releitura no dia do enterro de uma tia querida, que faleceu em decorrência do covid e da qual não pude me despedir. Livros às vezes têm esse dom de dizer aquilo que precisamos ouvir no momento.
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