Ana Aymoré 07/03/2020A fábula ecológica de Wagner WillianÉ possível aprender com os próprios erros? Quando o caçador já está velho demais para não afugentar precocemente a presa, ainda assim ele deixou de sê-lo? Ou resta apenas questionar "quando me tornei o calor do aço que carrego [...]?"
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Silvestre, híbrido de história em quadrinhos, livro ilustrado, sketchbook e livro de arte, é um dos lançamentos originais mais belos e ousados da editora Darkside, com o mérito adicional de publicar um autor nacional (escritor e artista visual) inspiradíssimo como Wagner Willian. Sua fábula, uma alegoria complexa e visualmente impactante da relação entre o humano e o natural, parte da solidão da vida de um velho caçador, quebrada quando ele tem seu lar invadido por divindades ctônicas, entidades mágicas de diversos e antiquíssimos registros culturais, animais dotados de saber ancestral - e, entre esse panteão telúrico, também os espectros da humanidade histórica, que construiu seu aparato civilizacional à custa da destruição da harmonia ecológica. Apartado daquilo que é também sua essência - como parte da ordem telúrica - para a adoração do deus único de seu próprio egoísmo, é o humano que se torna pura materialidade irracional, desprovida de empatia e atormentada somente pela antecipação de sua própria destruição, que, afinal, já se deu.
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Entre todas as imagens que permeiam e imbricam-se à narrativa, talvez uma das mais paradigmáticas seja a que se repete na folha de guarda e no final (uma luta entre um cervo propriamente dito e outro antropomórfico), e que remetem, por sua vez, à lenda relatada nas primeiras páginas: é justamente porque o jovem cervo macho, em sua arrogância, empreende disputas mortíferas com suas galhadas, que ele as perde e ganha, em seu lugar, outras maiores e mais exuberantes, mas que também vão se tornando, enquanto envelhecem, inúteis.
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A arte do livro, que mistura diversas técnicas como nanquim, lápis e tinta à óleo, é composta por camadas e camadas de atração visual, que convida a uma experiência de leitura atenta e absorvente, para se observar detalhes que, de outro modo, podem passar despercebidos. Finalmente, mas não menos importante, a tipografia também acompanha a sinuosidade, a surpresa e até a aparente ilegibilidade do espaço silvestre, com encurvamentos, rasuras, espelhamentos, quebras. Uma experiência multissensorial, como a de se atravessar um bosque isolado - mas densamente povoado, acima, abaixo e ao redor de nossa altura, por seres visíveis e invisíveis.