Perto do Coração Selvagem, romance de estreia de Clarice Lispector, assombrou leitores e críticos logo após sua publicação, em 1943. Tendo uma voz narrativa que ora incorpora o mundo interior da protagonista Joana, ora a contempla de fora, o livro alterna dois tempos: a infância, na qual a personagem interroga seres e coisas, e um presente intemporal como a eternidade, em que as vicissitudes de um casamento que jamais representou uma ilusão resumem os outros pequenos desastres que reconduzem a personagem a sua inadequação primordial. Com uma escrita tateante, sonâmbula, Clarice Lispector não recapitula de modo linear as vivências de Joana (como a morte do pai ou a separação do marido, visto desde sempre como um estranho), mas flagra o instante em que cada experiência ou cada encontro eclode com seu enigmático significado, apresentando-se como via de acesso ao "selvagem coração da vida" - conforme a frase de Joyce que, por sugestão do escritor Lúcio Cardoso, Clarice Lispector utilizou na epígrafe e no título desse livro que inaugura uma das obras mais inovadoras da literatura brasileira.
Manuel da Costa Pinto - Crítico literário e colunista da Folha
Ficção / Literatura Brasileira / Romance