Era inevitável que Jorge Amado escreveria, na maturidade literária a que chegou, no início dos anos 80 do século passado, um livro como 'Tocaia Grande'. Até certo ponto seria a síntese e não o resumo de sua obra. Já havia escrito 'Terras do Sem Fim' e 'São Jorge de Ilhéus', nos quais a personagem principal eram comunidades, embora formadas por intérpretes que ocupavam o primeiro plano da narrativa. Mais tarde, o autor nos daria grandes protagonistas, Gabriela, Dona Flor e Tieta, em torno das quais movimentaria seu universo social.
'Tocaia Grande' era uma terra de ninguém, sua face obscura é o imenso painel de misérias humanas, barro, e sangue, pólvora e facão, o tradicional embate de coronéis e jagunços, trai'~oes e fidelidades, e mais um turco e uma artista russa, dois frades que tentam salvar a alma daqueles infiéis - tudo narrado com a suculenta prosa de um dos maiores narradores da literatura universal.
Assim com José Lins do Regoque, em 'Fogo Morto', visitou todo o seu ciclo da cana-de-açucar, em 'Tocaia Grande'Jorge Amado percorre os 'punti luminosi' de sua obra anterior, a saga dos cacaueiros, das prostitutas, da violência, da vingança e do distanciamento de qualquer mandamento legal. Não temos o panfleto social de seus primeiros livros, a divisão entre bons e maus, a falsa consciência de que um dia todos poderão ser irmãos. A face obscura de 'Tocaia Grande"é a própria face obscura da sociedade humana, desprezada pela historiografia oficial, comprometida em exaltar hipotéticos feitos de hipotéticos heróis.
Carlos Heitor Cony
Colunista da 'Folha'