spoiler visualizarIsa Beneti 04/10/2020
Bons contos em contraste com maus artigos
Tive curiosidade de ler essa coletânea de contos de Monteiro Lobato após estudar sobre o pré-modernismo na escola e descobrir a verdadeira origem do Jeca Tatu: esse famoso personagem não foi inicialmente criado com objetivo de ser uma propaganda contra a ancilostomíase (amarelão), na verdade Jeca foi uma figura criada por Lobato no artigo que dá nome a essa coletânea ("Urupês") com o intuito de simbolizar os caipiras brasileiros e combater o caboclismo (tendência de idealização do caboclo assim como o indianismo romântico representava o índio).
Assim, usando como base ideias absurdamente deterministas e ultrapassadas, Monteiro constrói a imagem dum caboclo preguiçoso e coloca nela a culpa de toda a destruição natural (queimadas) e de toda a pobreza do país- são raros os momentos em que o autor invoca outros culpados, tal como o governo ou a classe mais alta da sociedade. Infelizmente a visão animalizada do "caboclo" preguiçoso, ignorante e culpado pelo retrocesso nacional vigora até os dias de hoje, como foi possível perceber no discurso de UM CERTO LÍDER POLÍTICO durante a reunião da ONU desse ano.
Entretanto, apesar de seu discurso totalmente utrapassado, preconceituoso e determinista (pois considera que a ignorância e preguiça do caboclo está relacionada ao seu sangue/biologia/raça), que compara os caipiras a meros parasitas (mais especificamente aos fungos "Urupês"), Monteiro se mostra à frente do seu tempo no que tange a questões ambientais. Afinal, percebe-se a paixão que o autor sentia pela natureza de seu país, que é descrita por ele de uma das maneiras mais belas que eu já li em toda literatura brasileira: "Por esses dias de março a natureza acorda tarde. Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblina e é com espreguiçamentos de mulher vazia que despe os véus da cerração para o banho de sol".
Esse trecho demonstra bem a tendência de Monteiro de personificar a natureza ao descrevê-la. Além disso, também fica claro no trecho que a escrita do autor não é das mais simples- é BEM complexa- e isso me irritou bastante durante a leitura: foi muito estranho ler contos que se passam no ambiente rural e contam histórias da população mais simples, mas que se utilizam de uma linguagem rebuscada e de um vocabulário pomposo.
O uso dessa linguagem fica ainda mais contraditório ao considerarmos que Lobato foi um dos grandes defensores da simplificação da língua portuguesa (principalmente o fim dos acentos desnecessários- os quais ele não usa na obra) e também defendia a utilização da linguagem coloquial em textos literários. Qual o sentido de defender isso e continuar usando linguagem super rebuscada nas suas próprias obras?
Essa, no entanto, é apenas uma das diversas contradições presentes no livro: a maior delas está entre a tese dos artigos ("Velha Praga" e "Urupês") e as histórias/personagens dos contos. Afinal, Monteiro se contradiz em seus artigos ao colocar o caipira como uma "raça" de total ignorância e falta de humanidade, visto que essa não é a realidade que ele apresenta em contos como "Mata-Pau" e "Bucólico". Muito pelo contrário, nesses contos o autor desenvolve personagens do campo que são dotadas de complexidade, humanidade e capacidade de ter compaixão, apesar de também criar "vilões" que tomam atitudes desumanas.
Na realidade, todos as histórias do livro contam com uma (grande) dose de desumanidade e morbidez: quase todos contam casos absurdos e exagerados de assassinatos, de acidentes, chegando até mesmo a contar um caso de de necrofilia. É por meio disso que o autor causa o "choque" no leitor, que é um elemento essencial no gênero "conto" (textos curtos que devem funcionar como um nocaute literário). Por outro lado, muitos dos textos também são recheados de humor, de críticas sociais e de personagens muito humanos.
"Os faroleiros", por exemplo, mostra a grande sabedoria e experiência de vida que possui um faroleiro (ou seja, os contos NÃO defendem a ignorância do caipira que é afirmada na tese dos artigos), ao mesmo tempo que conta a história de um assassinato entre companheiros de um farol graças a uma traição conjugal. "O engraçado arrependido" explora o humor por meio do exagero/caricatura, mas também é repleto de morbidez por contar a história de um comediante que tenta roubar a herança de seu parente cardíaco matando-o de tanto rir.
"A colcha de retalhos" é certamente o mais delicado de todos os contos e desenvolve muito a humanidade/complexidade de uma velhinha que vive no campo e perde sua filha e neta (e logo depois acaba morrendo). O tom do conto me lembrou muito "A Negrinha". É muito triste, um dos meus favoritos.
"A vingança da peroba" é talvez o que mais se aproxima da tese defendida em "Urupês", pois desenvolve a personagem do preguiçoso fazendeiro Nunes, que tem sua propriedade largada, em oposição ao seu vizinho trabalhador Pedro Porunga. O final desse conto é o mais mórbido de todos: o filho (criança) de Nunes acaba caindo dentro monjolo mau feito pelo pai após ter sido embebedado por ele. O garoto morre com os miolos esmagados.
"Um suplício moderno" é um dos que mais se relacionam ao contexto histórico da época e faz várias críticas ao coronelismo que vigorava na Velha República (compra de votos, voto de cabresto, etc), tudo isso por meio de muito humor.
"Meu conto de Maupassant" é confuso e também tem cenas pesadas de morte. "Pollice Verso" faz críticas à desonestidade humana ao contar a história de um médico aproveitador, que mata o paciente para ficar com sua herança.
"Bucolica" é meu conto favorito, pois nele Monteiro usa tudo o que há de melhor na sua escrita: as belíssimas descrições da natureza brasileira (discorrendo sobre a superioridade das flores selvagens, fortes, que crescem em um ambiente que não é propício, em relação às flores domesticadas), as tristíssimas histórias cheias de humanidade sobre uma morte inocente e, ao final, a chave de ouro é uma metáfora que relaciona a natureza descrita no início do conto com a triste história. Trata-se do caso de uma criança deficiente que morreu de SEDE por falta de cuidado da mãe, que a deixava com a criada negra. Achei interessante como a única personagem que demonstra ter afeto pela deficiente é a negra, o que é contraditório às ideias racistas de Monteiro.
"O mata-pau" também realiza uma metáfora interessantíssima entre a natureza- plantas parasitas que matam outras árvores- e uma história trágica da população rural- a de um menino adotado que acaba com o relacionamento (seduz sua própria mãe adotiva) e com a vida de seus pais adotivos. Interessante perceber que todo esse caso é contado por um trabalhador do campo num diálogo com um homem intelectual (que narra a história). O intelectual percebe, num certo ponto da narrativa, que as lições de ingratidão e desonestidade humanas que várias obras literárias, tal como "rei Lear", tinham lhe ensinado já eram conhecidas pelo caboclo não por meio da literatura, mas sim pela sua experiência de vida (novamente uma contradição com a ignorância caipira defendida nos artigos).
"Bocatorta" é um conto MACABRO de tão MÓRBIDO. Nele, o vilão é um "monstro": um menino negro deformado/deficiente que quase nada tem de humano, mas que era apaixonado por uma mulher da família à qual sua mãe (escrava) pertencia, por isso, após a morte dessa moça, ele rouba seu corpo do túmulo e tem relações com ele. Nas descrições de Bocatorta ficam claras algumas marcas expressionistas (exagero) da obra de Lobato.
"O comprador de fazendas" conta a história de um golpista que passava dias na casa de proprietários de terra fingindo que tinha interesse em comprá-la, e assim vivia passando de fazenda em fazenda.
Por último, "O estigma" é o único que se passa numa classe mais alta da sociedade e também denuncia a maldade/corrupção presente nessa camada social em que ocorre o assassinato de uma moça inocente por uma megera vil, apenas pelo ciúme que essa última tem por seu marido. Achei interessante como esse texto se aproxima do realismo mágico de Garcia Marquez, pois ao final quem denuncia o crime da megera é o seu próprio feto, que nasce meses depois do assassinato com uma marca de nascença igual a do tiro que matou a moça inocente. Além disso, vários dos contos me remeteram à obra de Jorge Amado, pois mistura a realidade das populações do campo com crendices/religiosidade/superstições.
Portanto, apesar de estarem repletos de morbidez (responsável por causar o "choque" no leitor) e de utilizarem uma linguagem desnecessariamente rebuscada, os contos possuem beleza descritiva e complexidade nos acontecimentos, nas metáforas, nas críticas e nas personagens, além de contradizerem o que é defendido nos artigos. Por isso, posso dizer que os contos são muito bem escritos e que valem muito apena de serem lidos. Já os artigos também devem ser lidos, visto que exerceram e ainda exercem grande influência na nossa cultura, mas é preciso ter uma visão crítica sobre a opinião ultrapassada e determinista do autor.