Lucio 28/05/2019
A História como Testemunha da Singularidade do Cristianismo
Esta é uma obra já de maturidade de Chesterton. Completa sua celebrada trilogia - que começa em 'Hereges', passa pela 'Ortodoxia' e finalmente chega aqui, cerca de duas décadas depois do segundo título. E o filósofo mantém o brilhantismo.
A obra é dividida em duas partes. Nas duas notamos uma 'redução ao absurdo' que no fim se converte em discurso positivo em prol da tese pretendida. Na primeira, começa mostrando como as noções naturalistas do homem, que o concebem como mero animal, e interpreta a história dessa forma, cai em teorias ridículas, como a nada evidente história do homem das cavernas com seu porrete a espancar mulheres. Antes, vemos no que realmente temos de concreto, o homem sendo homem desde o início, demonstrando habilidades artísticas que não se encontram em animal algum. Então, o homem não só era homem desde o início, como podemos contestar se ele emerge mesmo da barbárie politeísta para a civilização monoteísta, como presumem os especialistas (céticos) em religião. E o que temos de concreto é que desde cedo nos deparamos com civilização. E que é muito plausível conceber que o monoteísmo escapou aos homens por sua concepção transcendente demais. Os homens ainda demandavam sentido para o mundo e a sensação de que havia algo mais os fez criar seus mitos. Mas sabiam que seus mitos eram poesia. Não logravam o mesmo estatuto da fé. Lado outro, lá estavam os filósofos. Mas essas coisas coexistiam, pois não tinham a mesma pretensão, o mesmo estatuto gnoseológico.
As nações se organizam, os paganismos de várias espécies se estabelecem. Mas o maior de todos, aquele mais elevado, a grande realização humana, foi Roma. Ela passou por maus bocados enfrentando uma das piores formas de paganismo - a de Cartago e sua adoração infanticida a Moloque. Roma resistiu bravamente e subsistiu até subjugar os cartaginenses e isso foi obra da providência para que o melhor da humanidade fosse preservado.
Mas esse melhor não tinha fôlego. Envelheceu. Faltava-lhe algo. Faltava-lhe esperança. E o motor poético nos campos foi sucumbido pela crescente urbanização. Sem poesia, não havia mais mitos. Também estavam cansados de 'fingir'. Logo, a degeneração os espreitava.
Eis, então, a mudança súbita. O segundo livro. Aqui, Chesterton tenta mostrar a tolice de se conceber Jesus meramente como homem. Ele começa pela impressionante afirmação de que o criador estava ali, paradoxalmente, no singelo estábulo numa gruta. O homem das cavernas agora encontrava seu contraponto no menino na caverna. As mãos que criaram o mundo vistas nos dedos de um bebê indefeso. E sem considerar os milagres - perfeitamente plausíveis, apesar da contestação materialista -, tudo o que temos naquele homem - que sai da manjedoura, cresce e passa a ensinar por todo o Israel - eram ensinos extremamente intrigantes e profundos, longe das banalidades comuns nos espiritualistas em geral. Se isso não prova que ele era quem dizia, ao menos demonstra que não se tratava de um maluco megalomaníaco. Sensatez e sabedoria profunda exalavam de suas palavras.
Mas não devemos tomá-lo meramente como um mestre, um filósofo. Esses vagavam por aí a falar. Sua tarefa, no entanto, ultrapassava falar. Ele veio com uma missão, veio com um objetivo fixo. Ele veio fazer algo - morrer pelos seus.
Eis, então, que surge a Igreja. Não há explicação plausível para o seu surgimento e permanência, e esse é o tom do restante do livro. Ela não pode ser deduzida pela continuidade e fluxo de pensamento, i. e., das doutrinas que estavam em voga, nem como evolução delas e nem como reação a elas. De fato, ele surge e até as destrói. A descontinuidade é assustadora.
Além disso, teorias de seu surgimento e permanência dadas por racionalistas mostram justamente a ignorância a respeito do que é e sempre foi o cristianismo. Acusam-no de ser mero pessimismo asiático - pessimismo dedutível como reação ao hedonismo vigente, emergindo do desencanto místico com a morte dos poetas -, quando ele foi quem destruiu o pessimismo maniqueísta e gnóstico e propôs seu próprio pessimismo que não detestava o mundo e sim visava santificá-lo, bem como aos homens. Acusam-no de mera religião do Estado, como imposição dos poderes políticos. Mas o que aconteceu foi que uma religião mais 'racionalista' surgiu do cristianismo e tentou sucumbi-lo - trata-se do arianismo. E assim percebemos que os hereges em geral vão dando testemunho da singularidade do cristianismo, e negando aquelas identificações equivocadas que os críticos do cristianismo fizeram.
O cristianismo surge como que para entregar aos homens o que seus espíritos ansiavam, e que ficou demonstrado por seus próprios empreendimentos. Eles queriam uma história do mundo, que lhe conferisse sentido, e ao mesmo tempo queriam não se manter sonhando, mas queriam a verdade. Ganharam uma história verdadeira, e uma história que realmente explicava o mundo como ele realmente parece ser, sem banalidades ou reducionismos. Ele foi capaz de falar sobre o mal como ele realmente é, e dar uma teoria que pudesse lidar com ele, bem como uma teoria realmente humana da história, que não fizesse do mundo algo sem sentido plausível, incluindo os homens como seus agentes responsáveis. Fez da história do mundo uma aventura, mas não como uma fantasia e sim como um desvelamento do que realmente é.
E, o mais incrível, essa história admirável, incluindo a aparentemente absurda alegação sobre Jesus, permaneceu apesar de todas as circunstâncias. Sobreviveu a perseguições e ataques ferrenhos. Muitas vezes pareceu morrer. Pareceu principalmente por ter se harmonizado com as várias situações vigentes e, assim, ter passado a impressão que iria embora com o passar dos tempos e eras, e ascensões e quedas das sociedades e impérios com os quais se identificou. Mas ele surgia novamente. Superava as críticas e retomava a boa e velha ortodoxia. Algo, de fato, impressionante. Impressionante o bastante para parecer um milagre.
Como já dissemos noutras resenhas do Chesterton, ele não é um autor fácil de se ler. É fácil no sentido de escrever muito bem - extraordinariamente bem. Mas é difícil acompanhar seu raciocínio, as digressões e os vínculos entre as partes. É preciso ler com atenção. E é preciso notar contra quais tipos de objetores ele está lidando - embora, em muitas partes ele mesmo os declare. É preciso ter uma noção básica não só dos céticos liberais como de um esboço da história do Ocidente e das teorias da religião comparada e afins.
Passada essa dificuldades - e as provocações aos protestantes em geral e calvinistas e puritanos em particular -, o livro se torna extraordinário. Qualquer cristão que se pretenda como pensador responsável deveria ler esse livro. A sagacidade para discutir os temas parece afiar nossa própria mente. Não apenas para a discussão da história a respeito do cristianismo, mas para nortear as próprias reflexões sobre ela, bem como para discutir antropologia filosófica, filosofia da religião (particularmente em religiões comparadas) e até mesmo o Novo Testamento, o livro é formidável!