Mariana 12/03/2021Não se aproveita nada dessa leituraVai ser difícil falar sobre esse livro porque eu acho que não tem nada nele que eu gostei de verdade.
Acho que o PKD é mais contista do que romancista porque esse livro é todo errado em construção, estabelece muitas situações, mas nunca dá uma resolução para essas situações. Os personagens mudam de ideia de uma hora para a outra sem motivos aparentes, e tem muito personagem para pouca história.
Acho que essa história poderia ser contada inteira com metade dos personagens porque alguns deles não acrescentam nada e não servem para nada - muitos, inclusive poderiam ser mesclados com outros personagens e o efeito seria o mesmo.
Além disso, as coisas acontecem na trama em momentos aleatórios.
Até 25% do livro não tinha acontecido nada de interessante para deixar a gente curioso para o que viria em seguida e o que acontece aqui foi o Jack ganhar um amuleto, um amuleto que não serviu para nada no fim das coisas, que não é um objeto interessante (vale o conceito da Arma de Chekhov aqui, hein).
A trama de verdade mesmo, a introdução da importância do Manfred e a ideia de saber o futuro, só veio na metade do livro. Esperar mais de 100 páginas para descobrir como as coisas vão começar a acontecer? Como se não bastasse, em 81% do livro, o autor tem a cara de pau de introduzir uma caverna que faz as pessoas viajarem no tempo numa resolução totalmente deus ex-machina.
É uma bagunça completa.
A impressão que eu fiquei foi que o autor não conseguiu organizar as ideias e que esse livro é a primeira versão da história, aquele manuscrito que deveria ter sido revisado por alguém que precisava dizer o que poderia mudar e o que precisava organizar.
Eu não sei a opinião de especialistas sobre isso, mas me incomodou muito a questão de o "poder" do Manfred ser uma doença real e não uma habilidade que ninguém conhecia. Talvez fosse melhor que esse estado fosse único desse universo, algo que se parecesse com o autismo e com a esquizofrenia, mas sem usar esse rótulo. Não acompanho os estudos dessas duas condições, mas eu tenho a impressão de que o livro não tem uma boa representação.
Outra coisa: o famigerado tratamento com as personagens femininas. Definitivamente, autores precisam parar de enxergar o corpo feminino como sendo a única coisa sobre uma mulher que valha descrição.
Tudo sobre a Doreen eram os seios dela, os mamilos embaixo da blusa, o não sei o que do corpo… E a cena do Arnie transando com a personagem enquanto ela dormia, mesmo que tenha sido com a permissão (coagida, né, vamos ser realistas) dela, me deixou muito enojada.
Outra coisa sobre esse tópico: me irrita que autores de ficção especulativa consigam imaginar o diabo a quatro, imaginam um Marte que já é habitado há milhares de anos e autismo como poder de prever o futuro, mas não conseguem imaginar uma mulher fora do papel de dona de casa ou de amante.
A mulher que saiu um pouco dessa dualidade foi a Anne, que tinha uma loja, mas ainda assim ela era mãe acima de todo o resto, e a mulher que era responsável pelos professores na escola. E mesmo assim, ela precisou ouvir um comentário de dúvida do Jack no meio do caminho por ter aquela responsabilidade. Achei tudo de muito mau gosto.
Para fechar com chave de ouro: é racista, né, gente.
Os bleeks são uma mistura de indígenas com negros escravizados e o pior disso tudo não é nem a ideia de termos uma espécie sendo exterminada por colonizadores. Inclusive, essa seria uma abordagem incrível de o autor tratar. Mas não, ele escolheu colocar a culpa de os bleeks estarem morrendo nos próprios bleeks, porque eles eram fracos enquanto civilização.
O pior disso tudo é o jeito com que os bleeks são tratados no livro inteiro pelo narrador. Não existe uma condenação desse comportamento, o autor nunca faz o narrador comentar que isso é errado, que os bleeks são só diferentes, que eles é que são as vítimas porque esse era o mundo deles. Não, o narrador concorda com as opiniões dos personagens.
E isso tudo é muito errado.
Em resumo: detestei muito esse livro. Uma das poucas notas 1 que eu dei na minha vida, mas é a única nota que a história merece.
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