spoiler visualizarBrujo 11/02/2023
Deslizamento de Tempo em Marte
Quem lê o título deste livro (e nunca leu nada do PKD) logo deve pensar que se trata de uma sci-fi padrão, que fala da colonização de Marte e tem homenzinhos verdes. Ledo engano! Marte é apenas o cenário que Philip K. Dick usou para ambientar sua história e, sob essa base, ele se aventura a falar sobre diversos temas como percepção de tempo, doenças mentais, especulação imobiliária, relações conjugais, preconceito, colonialismo, pedagogia, eugenia... Acreditem, o autor fala sobre tudo isso e muito mais. Mas, dentre todos esses tópicos, eu diria que o objetivo central é tratar sobre a apatia para com próximo. Vou tentar dar detalhes sobre isso mais adiante.
Mas vamos ao contexto: publicado originalmente em 1963 na revista Worlds of Tomorrow de forma serializada e sob o título de "All We Marsmen" e depois em forma de romance em 1964 com o título "Martian Time-Slip", deslizamento de tempo marciano ao pé da letra ... E este título original faz jus à história, que trata o tempo não de forma romantizada (como em De Volta Para o Futuro, por exemplo), mas como algo que a tudo consome. E, para um personagem do livro, o jovem Manfred Steiner, o tempo colapsa sobre ele, como um deslizamento de terra. "Então, a percepção de tempo dessa criança é como a semente. Entendo. As coisas que nós conseguimos ver se mexendo passam zumbindo tão rápido por ele que são praticamente invisíveis, e aposto que ele enxerga processos lentos como o dessa semente aí. Aposto que ele consegue sair para o quintal e ficar sentado assistindo às plantas crescerem, que cinco dias para ele são como dez minutos para nós, talvez. " (Pág 172)
Em um planeta Marte colonizado pela ONU, vive Jack Bohlen, um reparador de equipamentos eletrônicos que vive com a mulher e o filho, que foi viver no planeta vermelho após um episódio de surto de esquizofrenia. "O que o atormentava desde o episódio de psicose envolvendo o gerente de recursos humanos na Corona Corporation era isto: imagine se não fosse uma alucinação. Imagine se o gerente de recursos humanos fosse do jeito como ele o vira, uma composição artificial, uma máquina igual a essas de aprendizado. " (Pág. 110).
Em determinado ponto, seu caminho acaba cruzando com o de Arnie Kott, talvez o personagem mais odioso já criado por Dick, um sujeito que preside a Companhia Regional de Funcionários das Águas. Como a água é um item essencial para a colonização e muito raro, Kott acaba sendo uma figura influente em Marte. Ele é o tipo de pessoa que dá tapinhas nas costas de todos, mas enxerga as pessoas ao redor apenas como objetos para atingir seus objetivos pessoais.
Kott descobre que haverá um empreendimento gigantesco em uma parte aparentemente inútil do planeta vermelho e contrata Bohlen para tentar se comunicar com um garoto autista de 10 anos, que Kott descobre ter a "dádiva" de ver o futuro. Entre aspas mesmo, pois PKD nos joga dentro da cabeça de Manfred e a forma que o garoto vê o mundo é simplesmente assustadora: tudo ao seu redor possui formas distorcidas e putrefatas. Ele vê em tempo real todas as coisas e pessoas sofrendo as deteriorações do tempo, que para ele tem uma forma de substância negra que em sua inocência ele chama de "Nhaca". "Nhaca, pensou ele. Ficou pensando, será que nhaca pode significar tempo? A força que, para o garoto, significa decadência, deterioração, destruição e, por fim, morte ? A força que opera em todos e por toda parte do universo? " (Pág. 184).
Manfred é assombrado pela visão de si próprio, idoso, preso a uma cama de um hospital destinado a inválidos, localizado exatamente onde haverá o empreendimento imobiliário visado por Kott. Jack tenta ajudar o garoto que, inconscientemente, acaba afetando a sua esquizofrenia. Basicamente, este é o plot central.
Para preencher a história e deixá-la mais densa, Dick trata do relacionamento de Jack e sua esposa Sylvia, e de como ambos entram em relacionamentos extraconjugais; conta sobre o sistema de ensino marciano e de como eles empregam robôs como professores de suas crianças; conta sobre o povo Bleek, os nativos do planeta Marte, nômades, pacatos e extremamente educados, que falam a estranhos colonizadores coisas como: " As chuvas que emanam da sua maravilhosa presença nos revigoram e nos restauram, senhor. " (Pág. 307).
Aqui entra minha única crítica ao livro: eu gostaria muito de conhecer mais a respeito dos Bleek.
"Esses nativos nômades e acometidos pela pobreza sempre apareciam nas fazendas em busca de comida, água, apoio médico ou, as vezes, só uma boa esmola, e nada parecia irritar mais os prósperos donos dos laticínios do que ser usados por essas criaturas de cujas terras eles tinham se apropriado." (Pag. 48).
No decorrer da história vamos conhecendo mais sobre eles, que são os únicos seres que conseguem, por exemplo, se comunicar com Manfred. Aparentemente, eles enxergam o tempo da mesma forma que o garoto, inclusive conduzindo a história do livro a medida que incitam Kott a fazer uma "viagem mística" com Manfred com destino a um ponto sagrado dos Bleek, a pedra negra chamada Vil Nodosa, que possui uma gruta dentro dela.
"Aposto que foram eles que deram a feiticeira da água para Jack. Claro. E ao darem-na para ele, já sabiam de tudo. Sabiam de tudo o que estava por acontecer, mesmo lá atrás, no princípio de tudo. " (Pág. 300). Esta viagem resulta na morte de Kott pelas mãos de um desafeto de negócios, na salvação de Jack, que provavelmente seria assassinado por Kott (em uma alucinação na Vil Nodosa, ele tenta atirar em Jack, mas um Bleek o atinge no coração com uma flecha envenenada) e, principalmente, resulta na acolhida de Manfred pelo povo Bleek, mesmo ele sendo um filho de colonizadores, o aceitam entre eles, o que acaba salvando o menino daquele futuro tenebroso.
A maioria dos finais das histórias do PKD sempre possuem um sabor amargo, um clima soturno e são abertos, mas não aqui. Todos os arcos dos personagens são fechados e o final tem um tom de esperança e beleza: Jack e sua esposa admitem um para o outro suas traições e acabam escolhendo dar uma segunda chance ao casamento; Manfred retorna, no próprio tempo da história, idoso e cheio de aparelhos eletrônicos, junto com os Bleek: "Jack Bohlen - a coisa foi pigarreando, e sua voz saía de um alto-falante mecânico, no meio daquelas máquinas, e não de sua boca -, vim até aqui para dizer adeus à minha mãe. - E fez uma pausa, ao que Silvia ouviu o aparato acelerando, como se tivesse trabalhando muito. - Agora posso lhe agradecer - disse o velho homem. " (Pág. 313). Achei esse um dos finais mais bonitos dentre os livros do PKD que já li.
Quero destacar o tema central do livro, na minha opinião e que eu já mencionei anteriormente: a apatia do ser humano para com o próximo. A apatia aparece inicialmente no relacionamento de Jack e Sylvia; aparece no tratamento dado aos Bleek; aparece na forma como as pessoas percebem as doenças mentais como algo do que se envergonhar. Só citando alguns exemplos.
Por fim, gostaria de observar que "Tempo em Marte" acaba sendo uma espécie de livro irmão de "Androides Sonham com Ovelhas Elétricas", que também trata de apatia, neste último caso, mostrando como os humanos da história aparentam ser menos humanos (com o perdão da redundância) do que os androides. Além disso, em "Androides..." nos é mostrado que a imigração para Marte é estimulada pelos meios de comunicação. E se ambas as histórias se passaram no mesmo universo? Os replicantes (não lembro se no livro eles usam esse termo), inclusive, poderiam ser uma evolução dos robôs educadores de "Tempo em Marte".
TS: King Gizzard and the Lizzard Wizard - Ice, Death, Planets, Lungs, Mushrooms and Lava (2022), Changes (2022) e Live in San Francisco '16 (2020)