caloanguajardo 24/11/2013
Asterios Polyp e o Jogo de Espelhos
Há quem diga que Alice no País das Maravilhas e sua continuação, Através do Espelho, obras de Lewis Carroll, sejam ridículas ou inúteis. Olhando superficialmente, podem não servir para qualquer nada no pragmatismo que tentamos impor à vida, para torna-la mais funcional e lógica. Claro, tais pessoas têm o direito de não apreciar uma história nonsense e ignorar o fato de que Carroll era, além de diácono, um matemático, e brincava com essa visão cartesiana que o senso comum luta para preservar.
Concordo que, para a Ciência, não têm valor substancial. Nas Artes, contudo, e em todas as suas órbitas, parecem ser aplicáveis como uma dimensão em que a luz – a lógica – se distorce ao redor do apreciador. Aonde quero chegar com tais argumentos? Aonde o leitor quiser ir. Se não quiser ir a lugar algum, e parar neste parágrafo, tampouco importa. O conflito foi semeado, agora mesmo, com essa espécie de paráfrase do Gato Mestre.
Na verdade, meu ponto é este: tal qual Alice, o sujeito distraído que entra numa dessas órbitas já aludidas pode tentar correr atrás do sentido das coisas, sobretudo como e por que fora parar ali e o que terá de fazer para sair, caso queira. Em vão. Porque nas Artes, às vezes se deve correr para achar boas coisas, em outras se deve parar e apenas inspirar-se com o que aparece.
Asterios Polyp, história em quadrinhos de David Mazzucchelli, publicada em 2011 pela Companhia das Letras em sua série Quadrinhos na Cia., com tradução de Daniel Pellizzari, foi o Coelho Branco que me trouxe à órbita da Nona Arte.
Sempre observei os quadrinhos de longe. Não tinha nada contra, só me faltava o impulso de parar e ler. Costumava ver uns exemplares aleatórios nas bancas. Achava-os bonitos, os admirava, mas muitos preservavam uma forma tradicional, um tanto previsível, e eu sempre elevo minhas expectativas. Via que alguns desenhistas faziam Superman, Batman, X-Men e outros títulos populares ascenderem à esfera de um Caravaggio (especialmente quando queriam terminar ou reiniciar um ciclo de histórias com mortes ou ressurreições). Mas a forma de narrar parecia imutável.
Plasticidade
Mazzucchelli não veste Asterios com um véu meio barroco, ou maneirista, ainda que a história em tese permitisse isso. Aliás, talvez se tivesse optado por ilustrações mais naturalistas, sua obra perdesse boa parte do encanto.
Faz sentido que ele adote traços que parecem debochar deles mesmos e das personagens, principalmente no caso dos figurantes. Afinal, não é à toa que Asterios seja um arquiteto. A ideia clássica que se tem desses profissionais é essa: para eles as formas, o design, a estética, tendem a importar mais que a execução e construção do projeto. Para os engenheiros a regra é o exato oposto disso.
O protagonista era, ele próprio, conhecido como Arquiteto de Papel. “Ou seja, um arquiteto que conquistou renome graças aos seus projetos, e não pelas edificações construídas a partir deles. Na verdade, nenhum de seus projetos chegou a ser construído”, como diz Ignazio, o irmão natimorto que narra a vida, os sonhos e os pensamentos de Asterios.
O autor não tem medo de abusar de noções de perspectiva, esboços, nem das formas geométricas em cada página. A narrativa está sempre suspensa no ar (e isto não é uma metáfora). Pode ser cortada ou não pelos próprios objetos das cenas. Os balões que encerram os diálogos entre as personagens são bem característicos, parecem marcar a personalidade de cada um. Até as fontes variam. O balão das falas de Asterios é quadrado e a fonte é idêntica à de Ignazio: letras garrafais, quase nada curvadas.
As cores são também contidas. Não são muitas, ficando entre azul, vermelho, amarelo, roxo e um pouco de rosa, em tons meio pastéis mas com muitos contrastes, com dégradés mais nas cenas externas, para indicar passagem de tempo.
História
Asterios Polyp tem esse charme que salta logo aos olhos: contornos, cores e volume mantêm uma relação intrínseca com o que se diz em palavras. Como esta é minha estreia falando sobre o mundo dos quadrinhos, fico receoso em ler mais do que há para ser lido, ou superinterpretar o que o autor deseja expressar.
Assim que terminei de ler, pensei no que escrever. Olhei para a capa. O sobrenome Polyp chamou atenção. Lembrou-me de alguma coisa.
“Seu pai, o Dr. Eugenios Polyp, imigrara para os Estados Unidos com a família quando criança, em 1919. Impaciente, o funcionário da imigração da ilha Ellis abreviou pela metade o sobrenome da família, deixando apenas as cinco primeiras letras.”
Fiquei imaginando se poderia ser alguma brincadeira, ou uma pista. “Poly” remete a “polígono”, ou até a “polypropene”, material plástico usado na fabricação de embalagens e outros.
Em diversos momentos, Asterios é mostrado como um amontoado de formas geométricas ocas (ele talvez prefira se ver como “transparente”, com o ar virtuoso que essa palavra traz à personalidade de qualquer um). Ocas ou plásticas. Isso torna ainda mais bonitos os entrelaces e desenlaces com sua ex-esposa, Hana Sonnenschein.
Ela, uma hachura de pessoa, professora de escultura, era feita de luz e sombra, sem contornos claros que a realcem, dá a ele volume e luminosidade, e ele dá em troca o contorno. Conheceram-se numa festa do corpo docente em 1984, na faculdade em que ambos lecionavam.
Outro rompimento de Mazzucchelli com a tradição é a falta de linearidade narrativa. O leitor não deve esperar começo, meio e fim bem ordenados, com o clímax de cada capítulo bem definido, como tende a ser comum no romance, por exemplo.
Asterios Polyp, no começo, não passa de um homem de meia-idade, com 50 anos feitos já nas primeiras páginas, entregue à auto-piedade e ao tédio. O que o leva à ação é um raio que causa incêndio em seu apartamento.
O protagonista se vê abandonado ao revés, sem saber aonde ir ou o que fazer. Nos romances, é de praxe revelar as ambições do herói e as tensões vão brotando no meio do caminho, prendendo a atenção do leitor que espera que o ciclo se feche e o objetivo seja alcançado.
Aqui não. As perguntas deixam de girar em torno do “Será que ele vai conseguir?” e passam a ser “Onde está Hana?”, “Por que o casamento não deu certo?”, “Por que ele é assim?”.
Influências
A obra inteira está permeada por ícones. Entretanto, isso não deve afastar leitor algum. Quem não entender as pistas entregues por tais ícones, certamente deve apreciar o frescor que é uma história em quadrinhos literalmente contada por linguagens verbal e não-verbal muito fortes.
Mas o que ali não está indicando claramente algo, está refletindo. As influências no enredo são perceptíveis: já no início aparecem Tweedle Dee e Tweedle Dum (irmãos gêmeos) e o tabuleiro de xadrez, representando Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho.
No mesmo quadro, o garoto Asterios aparece lendo um livro qualquer, enquanto que em sua mesa descansam O Príncipe e o Mendigo, de Mark Twain, e O Homem da Máscara de Ferro, de Alexandre Dumas. Ambas são histórias que falam de irmãos gêmeos. O curioso é que ele conta a Hana que só tomou conhecimento de Ignazio na adolescência.
Nesse aspecto, Mazzucchelli passa perto de O Homem Duplicado, de José Saramago e fala, ou grita, evocando Jorge Luís Borges com esse tema do encontro consigo mesmo num outro universo.
Ignazio e Asterios dividem uma história acabada prematuramente, mas dividem (num bom Realismo Fantástico à la Borges) se não a mesma consciência, ao menos as mesmas inquietações existenciais.
A questão da dualidade da natureza do homem é outro assunto central aqui. A referência a Harry Haller e O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse (o qual inclusive é citado) é clara. Haller também fazia 50 anos quando embarcou numa jornada de autodescoberta.
Provavelmente, assim como Hesse, Mazzucchelli quis evidenciar que até mesmo um homem tão inteligente e sagaz quanto Asterios Polyp possa cair nessa armadilha maniqueísta de enxergar tudo em dois polos: preto ou branco, positivo ou negativo, bom ou mau. O gêmeo bom e o gêmeo mau.
É aí que se concentra o fascínio dos leitores. Estes se veem refletidos no embate do bem contra o mal, de si contra si mesmo, do que realmente é contra o que deveria (ou poderia) ter sido. Sim, o leitor gosta de se ver refletido e sim, isso significa que todos são, em algum grau, literariamente narcisistas.
No meu caso, meus amigos viram meu reflexo em Asterios. Minha admiração por esse trabalho já é grande, como se pode notar pelo grande número de linhas, e só não foi maior porque anos antes havia passado pelo tratamento de choque de O Lobo da Estepe.
Continuo com meu lado sensível de apreciador de certas artes, mas com meu lado corrosivo e sarcástico. Só acabei arranjando um jeito, como Polyp e Haller, de adicionar luz, sombra e muitas outras dimensões.