mpettrus 08/05/2024
?Uma Comédia Trágica de Mal-entendidos?
?[...]a felicidade sempre me pareceu uma ratificação, uma vitória.?
??Bom dia, tristeza? é um romance escrito pelas mãos de Françoise Sagan em 1954, a época com dezoito anos de idade. Um verdadeiro ?achado? literário francês.
Um verão quente no Mediterrâneo. Uma vila esplêndida. Uma garota de dezessete anos descobrindo os mistérios do amor, os encontros fortuitos, os primeiros beijos. Esse é o pano de fundo dessa história que, para mim, guarda um final agridoce e inevitavelmente resignado.
? Imagine um verão quente e lânguido, calhetas meio escondidas onde você pode namorar uma garota ociosa, refinada e apática que descobre o amor naquele verão e que, por tédio e espírito de rebeldia contra as convenções da vida burguesa, mergulha num jogo entre amantes com um desfecho trágico e imprevisível.
Esse é o cenário em que duas vidas se cruzam: a juvenil adolescente Cécile e o jovem adulto Cyril. Para completar o elenco temos o enredo entre três personagens maduros: Raymond (pai de Cécile), Elsa (amante de Raymond) e Anne (amiga de Raymond e Cécile).
? Cécile é extremamente ligada ao pai. Por vezes, cheguei a pensar que Sagan me revelaria um plot de incesto, porque o sentimento que a filha tem pelo pai me lembrou do ?Complexo de Electra?, sobretudo, depois da chegada de Anne na rotina imperturbável entre pai e filha na Riviera Francesa. Esse é um mistério que só é decifrado na reta final da história.
Foi interessante como Sagan desenvolveu o relacionamento entre Cécile e Anne, depois que esta se envolveu romanticamente com Raymond. Estabeleceu-se uma guerra silenciosa entre as duas por poder e domínio sobre o mesmo homem que amavam: Raymond.
Esse é um personagem ambíguo, complexo. Eu não compreendia porque em determinados momentos ele não defendia com unhas e dentes sua adorável filha. Até nesse detalhe, Sagan foi sagaz: uma mãe moveria mundos e fundos para defender a vida da sua cria, já o pai, nem tanto.
? É curioso que os personagens desse romance sejam inusitados, que se movem com liberdade e leveza, evitando a moral da época com um cinismo galopante, ou quem sabe até, da ausência do próprio cinismo.
Em contraste com o trio Cécile, Elsa e Raymond, Anne tem um caráter autoritário, o que me leva pensar que foi o motivo de Cécile entrar em guerra com essa loira aristocrática elegantérrima. Silenciosamente, a adolescente executa um plano diabólico contra a intrusa.
Esse jogo sutil e ternamente cruel de Cécile contra Anne para permanecer "livre", sem rivais para disputar as atenções do pai com outra mulher cria uma comédia trágica de mal-entendidos até um inesperado final, triste e fatal, como um salto em alta velocidade no vazio.
Um vazio que não parece consolador, mas apenas cúmplice da leveza e crueldade de Cécile.
?É a descrição indubitável de onde pode levar um astuto cálculo psicológico conduzido com malícia e imaturidade por Cécile, que até o final alterna momentos de clara intuição com outros de dolorosa perplexidade, estados de ânimo e encantada satisfação por sua nova capacidade de manipular os sentimentos das pessoas a um arrependimento atormentado, no qual lembra a triste parábola do autor de "De Profundis".
No final da história, restam apenas a vontade de reprimir e uma autoindulgência melancólica que essencialmente absolvem a protagonista.
Somente ela sabe de seus pecados. Por saber disso e relembrá-los todas as manhãs é o seu castigo eterno, mesmo após tantos anos daquele fatídico verão de 1954. Perceberam agora o porquê do título?!
?A tristeza envolvente, escorregadia como a ?seda, irritante e doce?, está ligada à perda da inocência, à vivência de sensações físicas e reverberações emocionais, ao sentimento de culpa por ter dirigido a trama fatal.
? A narrativa breve de Sagan nos dá um vislumbre da Riviera Francesa após a Segunda Guerra Mundial, antes do ?boom? do turismo na França, brilhante e íntimo, obscuramente moderno pelo seu conteúdo erótico e cínico.
Na verdade, num certo sentido, essa obra poderia ser considerada o manifesto de um novo decadentismo, contemporâneo, mas menos intelectual que o de Sartre e menos aristocrático que o de Wilde, eu diria bastante descomprometido e feminino.
O romance é curto, construído através de sequências belamente descritivas entre paisagens e pensamentos da protagonista. Surpreende desde as primeiras páginas pela sua atmosfera envolvente e sensual: os dias quentes de praia, o perfume dos pinheiros, a frescura da água sobre a brancura das areias.
? Os personagens, embora descritos com poucos traços, são bem delineados. Cécile e seu pai têm um vínculo ambíguo que sugere uma tentativa inconsciente da filha de substituir a falecida mãe. Ambos são egocêntricos e focados em satisfazer seus próprios prazeres e desejos.
Raymond é um pai com mentalidade adolescente, preocupado apenas em não perder os atrativos físicos: amigo e cúmplice da filha, ele a deixa viver sem regras e sem pontos de referência.
? Cécile é uma figura complexa e contraditória: aparentemente forte e descarada, mas é na realidade frágil, profundamente insatisfeita, ávida por afetos sinceros e adultos de comportamentos coerentes.
O papel de Anne é igualmente interessante: inicialmente apresentada como fria e desdenhosa, ela se revela sensível e insegura ao longo dos acontecimentos.
? A história e os personagens inspiraram em mim um sentimento de perda e profunda melancolia. Esse sentimento sombrio atormenta ?com as suas preocupações e a sua doçura?, misturando arrependimento, melancolia, ternura, que, no entanto não apagam a gananciosa expectativa de felicidade.
? O texto de Sagan, que causou sensação na década de 1950 ao vender milhões de exemplares, ainda hoje é muito relevante: faz-nos refletir sobre a ausência de valores na nossa sociedade e sobre os difíceis equilíbrios nas relações interpessoais e familiares.
? Um romance fascinante, de vago sabor existencialista e neorrealista, numa personalidade dispersa e gratuitamente ?fácil?, na escrita seca e elaborada descrevendo uma transição para a idade adulta e a vontade de transpô-la para a sociedade, antecipa o naufrágio de tantas outras revoluções pessoais.
? Num estilo sublime que canoniza a superficialidade como o mal de viver, a literatura de Sagan é honesta, desprovida de grandes ambições e pretensões, que tem o mérito de uma elegância sutil, também nos prova inconteste no papel de que para escrever uma obra-prima não são necessárias centenas e centenas de páginas.
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