spoiler visualizarMaria 11/02/2020
Canções que começam na cabeça e enchem o coração
Segundo livro de uma “trilogia” iniciada com “Amada” e finalizada por “Paraíso”, Jazz, como o próprio título sugere, é um romance embalado pela música que, pode-se dizer, é a verdadeira protagonista da trama. Temos como personagens centrais Joe, o homicida, Violet, a mulher traída e Dorcas , a jovem assassinada.
No entanto, a genial Toni Morrison, sabiamente, não age como juíza, escolhendo adjetivos e classificando de forma sentenciosa cada personagem; o que ela faz, e o fará com a maestria, creio eu, que acompanhará toda a sua obra, é contar-nos histórias e histórias por trás das histórias, permitindo uma proximidade com cada personagem que, se não for capaz de desenvolver a nossa compaixão, despertará uma luz, ainda que tênue, de compreensão por aquilo que dói no outro e, inicialmente, não nos atinge.
Joe, com sua paixão obsessiva, encarado por muitos apenas como mais um velho obcecada por uma jovem, é um ser profundamente solitário que, de forma pungente, fora marcado pelo abandono materno. E esta mãe, que não nos cabe julgar, louca e tão arredia, cuja proximidade com o outro parece exigir tanto de si que, indago-me, quantos se questionaram como foi possível a gravidez e quem teria sido o autor do estupro, embora, claro, tais questionamentos não façam parte da trama. Violet, coitadinha, ridicularizada por ter sido “trocada por uma jovem”, ansiava por ter quadris mais avantajados, devorando sempre seus milk-shakes e carnes de porco, depositando naquela parte da anatomia esperanças de, quem sabe, recuperar algo inicialmente farto- e perdido- em seu casamento. Violet que, ainda criança, ansiou por amor e só o encontrou na figura da avó materna; afinal, os pais nem sempre parecem compreender essa necessidade dos filhos, envoltos que estão em suas próprias tragédias interiores. A mesma Violet que, no momento do velório, atingida pela fúria, tenta desfigurar a morta, marcando-a com a sua dor e, mais tarde, tornar-se-á tão obcecada pelo fantasma -afinal, quem pode concorrer com uma morta?- que buscará, através de cada pequeno detalhe que descobrir sobre a moça, alguma resposta àquilo que acredita ter maculado o seu casamento. Dorcas, a bela garota de pele ruim, cuja doçura, que ninguém mais, além do seu homicida, conseguia vislumbrar, desencadeará uma paixão tão profunda no solitário Joe que será, ao mesmo tempo, sua perdição e salvação.
Nesse desarranjo harmonioso, teremos outras vozes, como a de Felice, melhor amiga de Dorcas e, a despeito ou, quem sabe, também por isso, a primeira a julgá-la duramente; sua tia, Alice Manfred, que usara a rigidez como mecanismo de proteção e, ao final, teve que lidar com sua ineficácia, tão dura e, ao mesmo tempo, detentora de inequívoca ternura pela morta, criada por ela desde que perdera os pais de maneira trágica; Golden Gray, o mestiço de quem todos só enxergavam a brancura, filho de uma branca rica e um negro pobre, criado pela avó de Violet; Henry Lestory, o Caçador dos caçadores, que deu a vida a Gray e deixou a sua marca em Joe, nascido em sua casa e por ele salvo; Malvonne, cuja arma para escapar da solidão era a maledicência; o amante de Dorcas, cujo maior atrativo era ser disputado por tantas, tão preocupado em manter-se impecável que a única sensação/emoção que visão do sangue jorrando do corpo da amante poderia provocar-lhe era a preocupação em macular suas elegantes vestes.
Lançado um ano antes de Toni Morrison tornar-se a primeira mulher negra a receber o Nobel, Jazz é, sem dúvida, um grito de angústia, desespero e, ainda assim, liberdade . Enfim, a escrita de Toni é realmente densa, como muitos afirmam; e, em diversos momentos, parece escapar ao nosso entendimento, o que me remete a uma outra autora, também genial, com quem compreendi que nem sempre é preciso saber, basta sentir.