spoiler visualizarKaren 27/11/2023
Sentimento puro e complexo: uma verdadeira obra de arte
Comecei a ler por acaso. Puxei um livro aleatório na estante de casa e fui fazer graça para o meu marido.
Eu, que nunca fui muito fã de poemas, me peguei encantada para ler. Particularmente sou muito crítica aos poemas que não possuem métricas e rimas bem definidas, para mim é mais uma prosa do que poema. Morte e Vida Severina é desses que a rima não está bem definida e nem sempre a métrica é perfeita (motivo das 4 estrelas), mas ainda assim o conteúdo venceu meus preconceitos e me fez querer terminar de ler.
Demorei alguns dias para ler, mas quem quiser consegue acabá-lo em uma sentada. O livro é um tanto curto, mas rico. A temática me fez querer chorar algumas vezes e em outras senti um aperto no estômago. A dor dos retirantes talvez nunca tenha sido tão bem transmitida quanto nesse livro.
Esse livro em si possui 3 obras de João Cabral de Melo Neto. A primeira (O Rio, 1954) parece meio nada a ver quando começa a ler, trata-se de um rio. Mas quando chega na segunda obra (Morte e Vida Severina, 1956), tudo faz sentido. A terceira (Uma Faca Só Lâmina, 1956), talvez eu não tenha compreendido muito bem, mas me pareceu retratar outra perspectiva mais subjetiva.
*Spoiler*
Morte e Vida Severina retrata a pobreza, dor e sofrimento dos retirantes que deixavam suas terras natais em busca de uma vida melhor em Recife, rumo ao mar. Para quem gosta de artes plástica, é indissociável as obras do Cândido Portinari: os retirantes e o bêbe morto. São duas pinturas muito fortes que transmite o por meio da imagem o sofrimento passado por essas pessoas. Melo Neto faz a mesma coisa, porém por meio das palavras em seus poemas.
Cada um dos 3 poemas do livro retrata um ponto de vista do que seria esse fenômeno social tão cruel. O primeiro, O Rio, vai contando a passagem de um rio que conforme vai avançando em direção ao mar, fica cada vez mais sujo, pesado e lamacento. Assim como a jordana dos retirantes. No entanto, a perspectiva do rio é como se fosse um olhar de fora. Um olhar de quem, ainda que faça parte, não seja de fato os retirantes e entende e sente todo aquele sofrimento de uma maneira diferente.
A segunda parte, que leva o nome do livro, Morte e Vida Severina, traz a visão do retirante em si. Um retirante vai contanto sua história e sua passagem, sentido o caminha pelo qual vai passando e toda a morte que vai vendo. Até que quando está perto do seu objetivo, o mar, algo acontece e gera um questionamento. Esse para mim é o auge do livro. Nesse momento eu quis chorar e a barriga embrulhou. Seria impossível não sentir os sentimentos, ainda que só um vislumbre deles, que o próprio retirante sentiu.
Já a terceira parte, Uma Faca Só Lâmina é bastante abstrato e meio complicado de entender, pelo menos para mim, a princípio. Porém, quando reli, entendi que se tratava não apenas da história dos retirantes, mas dos sentimentos mais profundos e complexo que eles poderiam sentir em meio a fome, à dor e à luta. São sentimentos que machucam por dentro.
*Fim do Spoiler*
Essa construção complexa aconteceu ao longo dos anos. No fim do livro tem a trajetória do autor e suas obras. É possível perceber que Melo Neto foi evoluindo e o texto que antes poderia soar até meio esquisito e sem sentido, quando se junta as três obras em 2007 elas ganham uma nova conotação, um complemento espetacular.
Um livro que deve ser lido por todo mundo, mas que definitivamente não serão todos capazes de entender. Isso porque ao se tratar de uma realidade tão adversa, tão miserável, tão cruel, aqueles que nasceram em berço de ouro ou em regiões mais favoráveis e que não possuem a tão falada empatia, certamente jamais chegaram perto de compreender a pobreza,ou melhor, a "falta de riqueza" (como escrito na contracapa do livro por Arnaldo Jabor) que existe no Brasil.