Gabriel 10/05/2023Esboço para uma cicatrização de nossas veias abertas.Difícil começar pois esse livro beira a perfeição. Farei breves comentários, não tenho a pretensão de resumir ou encerrar a discussão sobre a obra, apenas organizar minhas ideias. Então pode sair algo confuso daqui.
A narrativa de Detetives Selvagens é incrível e densa concomitantemente; a escrita é visceral e crua, não conseguimos parar de ler; a metaliteratura sempre presente nas obras de Bolaño é um deleite à parte; Em sua totalidade o romance é sobre política, poesia, violência, dependência, colonização e tudo o que resume a América Latina.
O que Bolaño fez em forma de literatura é algo fora da curva. É um mapeamento de um geração, um inventário de sentimentos e sensações e escancara (de forma experimental) particularidades de uma região do sul global, porém, universalizante no que concerne a construção do mundo Ocidental. O que acontece aqui reverbera em todas as nossas questões enquanto periferia do mundo capitalista. Uma geração que cresceu com a ascensão de um ideal utópico baseado em conceitos iluministas se vê sem perspectivas, sem norte, sem rumo. São os fantasmas, os deslocados, os delinquentes, os sobreviventes. Esses são verdadeiramente os protagonistas (nós!) deste romance. Relacionados a queda (o esfacelamento da Verdade) fazem parte as revoluções mal-ajambradas, as ditaduras (e com ela a violência), a cooptação neoliberal e a descrença nas grandes narrativas. Só resta a fragmentação. Os cacos estão estirados, estilhaçados e para quem sobrou a tarefa de juntá-los? Um grupo de jovens poetas idealistas (os real-visceralistas) tentam formar um movimento de poesia vanguardista com perspectivas de mudança estética e de ruptura com o que é vigente, mas nem eles sabem o que de fato caracteriza o real-visceralismo. Buscam a gênese na poesia de uma escritora (Cesárea Tinajero) que mal conhecem a obra. Saem em uma jornada pelo deserto mexicano a procura de uma resposta, mas não a encontram. Em resumo: estão perdidos, no fundo SÃO perdidos. A atmosfera que a obra nos passa é de imprecisão, nada é categórico, toda a construção narrativa é turva, ébria, porém, a escrita é direta, sem rodeios, límpida. A ambiguidade da obra é uma particularidade à parte e pode ser definida na resposta dos nossos heróis, Arturo Belano e Ulises Lima, em conversa com um determinado poeta que fez parte de um movimento de vanguarda no México no início dos anos 1920. Perguntado aos jovens se valeria a pena toda essa investigação sobre a vida de Cesárea Tinajero um deles responde simonel (sim e não ao mesmo tempo na gíria mexicana). Ainda no campo da ambiguidade alguns fragmentos e relatos parecem nos mostrar a literatura decaída de um suposto pedestal. Alguns personagens descrevem essa busca e o movimento dos protagonistas como uma certa ingenuidade, um ideal que ruma ao fracasso, considerando a persistência dos jovens poetas a um purismo triunfante, orgulhoso e imaturo. Ao mesmo tempo são passagens que mostram o quanto Arturo e Ulises marcaram a vida de outros e o quanto são apaixonantes e autênticos em suas vivências. Nem tanto lá, nem tanto cá. O acaso, a banalidade e os interesses mesquinhos também fazem parte do mundo literário e da vida em geral, assim como o idealismo na constituição de uma pensamento vanguardista. Parece existir a tentativa de trazer a discussão para o plano terreno, o da análise, observando todas as nuances do momento Histórico e deixando evidente sua complexidade. O livro não é apenas sobre vagabundos, deslocados e ingênuos, ao mesmo tempo que também é, mas principalmente sobre o que virá depois. O certo é que no limbo não há mudança. Contudo, o livro (em seu formato, inclusive) é uma investigação, um agrupamento de fatos e relatos e nós somos os verdadeiros detetives. Bolaño nos repassa essa tarefa, a compartilha com a geração posterior a sua. Nos revela o inventário (a memória) de onde sua geração parou e nos provoca (uma imposição involuntária a quem lê) a continuar essa averiguação. Assim, ao meu ver o romance não é apenas o retrato pessimista de uma geração. Não mostra uma resposta aos nossos problemas, mas é antes um convite a continuidade na busca de um norte, a saída do labirinto (ou círculo vicioso), a costura de nossas veias abertas, a construção de nossa própria história
Obs1: As referências literárias são abundantes, especialmente as obras latino americanas. Não é um impeditivo a leitura, mas sem dúvida enriquecem para uma interpretação mais concisa.
Obs2: Recomendaria ao leitor que antes de pegar este livro já tenha um certo tipo de conhecimento sobre as obsessões de Bolaño presentes em obras anteriores.