spoiler visualizarPeterson.Silva 28/04/2022
Sublime
Este livro é fenomenal. Não sei como demorei tanto pra lê-lo. Fui completamente envolvido pela leitura, pelos personagens, por tudo; o estilo é impecável (se ao menos um pouco antiquado, mas combina, em vários sentidos, com a ambientação) e as possibilidades que ele nos lega são muitas. Amei, amei demais!
Vou comentar o que fui pensando à medida que fui lendo, e vou fazê-lo, a partir daqui, com spoilers.
No prólogo, minha primeira opinião foi que somos jogados em cena de uma forma um pouco "impressionística"; personagens sem nome nem características têm voz, sabemos que se trata de uma fogueira na noite de natal mas não sabemos bem onde, ou por que aquelas pessoas estão ali, ou qual a ambientação exata... Parece como um daqueles filmes antigos sendo queimados, só que ao reverso, em que a imagem completa (que de fato nunca se forma) vai aparecendo aos poucos, do meio pra fora, um círculo ali, um pontinho aqui, depois se juntam e vão se espalhando com um detalhe a mais aqui e ali, e assim vai, meio que com o mínimo de informação que for possível conceder. Talvez por ter vindo de uma leitura bem diferente ('O Coração das Trevas') fui impactado por esse estilo como se fosse algo ruim. Mas imediatamente reconsiderei: não, não, é bom. É perfeito, na verdade, para o tom sinistro que se quer dar à história que virá a seguir.
Inclusive achei que voltaríamos àquela cena inicial. Por que começar com um grupo lendo a história que leremos se não for pra terminar acompanhando os efeitos da leitura sobre eles? Bom, porque essa narração indireta (que aparentemente foi bem marcante de Henry James, conforme vim a saber depois) aumenta ainda mais o suspense, a expectativa. Nos deixa ainda mais conscientes de que estamos lendo um relato, por assim dizer, então nos distancia um pouco do ocorrido, em termos de julgamento sobre o que de fato aconteceu (algo muito importante nessa história) ao mesmo tempo que nos aproxima - que é o que toda adaptação tenta fazer quando coloca no cartaz aquela velha frase, "baseado em fatos reais"... De qualquer forma, não digo que senti falta do reaparecimento dessa trupe no fim do livro. O fim é bom do jeito que é, e depois, o que é que se ganharia voltando a eles? O jeito que eles reagiriam nós já sabemos - é provavelmente como estamos nós mesmos reagindo.
De qualquer forma, sobre a história de fato. É o seguinte: sim, a relatora pode estar inventando tudo, ou escondendo coisas, ou ter escrito as coisas de um jeito extremamente parcial. Mas eu acho que a galera se passa um pouco ao falar de "unreliable narrator" _nesse_ livro em particular. Narrador que não dá pra se confiar você não confia porque existem elementos narrativos que te dão margem pra isso. Se for pra presumir que toda narrativa em primeira pessoa é "desconfiável" na literatura, daí fica difícil mesmo ler. Não é nem divertido, né. Me lembra aquele experimento do sociólogo Harold Garfinkel:
"Foi pedido aos estudantes que conversassem e agissem com alguém supondo que a outra pessoa estava escondendo os verdadeiros motivos para tudo que dizia ou fazia. Ou seja, cada estudante deveria presumir que a outra pessoa estava tentando enganá-la. Foi difícil sustentar e levar adiante a tarefa. Os estudantes disseram ficar o tempo todo pensando que eram parte de um "jogo artificial" e que não estavam conseguindo "fazer o papel deles", e que frequentemente “não sabiam o que fazer a seguir”. Ao escutar a outra pessoa, não conseguiam fazer mais nada ao mesmo tempo. [Muitos] disseram que se esforçaram tanto em manter a atitude de desconfiança que se perdiam no meio da conversa. [...] Para muitos estudantes, supor que a outra pessoa não era o que parecia e por isso devia ser tratada com desconfiança era o mesmo que supor que a pessoa estava irritada com eles, ou que os odiava."
Tipo, sem a gente ter evidências de que falta algo na narrativa, ficar pensando "ah mas pode ser que" é meio que um exercício vazio. Sim, ela pode ter mentido, porque sim. Tá, e...? Pode ser que tudo que aconteceu em Harry Potter é um delírio dele, um sonho que seu cérebro inventou quando ele tinha 10/11 anos pra fantasiar com uma vida além da horrível que ele tinha. E daí? O que isso adiciona? Qual o sentido dessa interpretação? Eu acho que ela só atrapalha a imersão na história.
Então, eu gosto de pensar que a narrativa deve ser interpretada, no mínimo, como algo "sincero". Se ela estiver "louca" e os fantasmas forem coisas de sua cabeça, ok - mas eu quero que isso seja uma interpretação plausível _dentro da história_, e não porque ela, ao ter escrito suas memórias, escondeu alguma coisa no relato dela, que é uma coisa que podemos tirar da cartola se quisermos mas não tem evidência nenhuma.
E, com esse parâmetro, há duas evidências, uma fraca e uma forte, de que as aparições eram reais. Em primeiro lugar, Miles de fato morre. Ok - essa é fraca porque o garoto podia ter, sei lá, uma condição genética do coração, e ter dado um infarto ali numa situação emocional. Bem, a questão é que, sem nunca ter conhecido, visto, ou ouvido falar de Quint e Jessel, a narradora os viu, e conseguiu, AO DESCREVER o que tinha visto, evocá-los na memória da governanta. Ah, gente, não, poxa... Isso pra mim é cheque mate. Os fantasmas são reais! O único jeito de não serem é a narradora ter tido conhecimento detalhado deles _antes_ disso e não ter _nos_ contado. De novo, acreditar nisso só porque a gente quer? Não, né? Pra mim, são reais.
Uma objeção em termos de "o que essa interpretação adiciona?" é que, bem, sim, se a gente brincar de não saber se é coisa da cabeça dela ou se as aparições são reais (no mínimo, se as crianças também as veem)... A parte da Flora no final fica muito mais legal. A criança reagiu daquele jeito como ela reagiu porque estava sendo acusada de mentirosa, e a preceptora estava sendo levada ao limite da paranoia, ou porque seu fingimento de fato chegou ao fim? É um cenário muito interessante, e confesso que ele nos tenta a duvidar das aparições, com a simpatia por todas as personagens (... e se realmente for paranoia - coitadinha da Flora!!!). A narrativa realmente tem dessas, e por isso acho ela TÃO boa! Mesmo assim, ainda fico com essa leitura, até porque várias outras partes ainda mantém essa questão de dúvida: será que as crianças veem ou não? Isso aí realmente é um mergulho na paranoia mesmo, porque é uma coisa muito de a opinião da preceptora sobre as crianças ir mudando, e ela presumindo coisas a partir de impressões muito subjetivas - isso aí eu realmente confesso que, na medida em que ia lendo, não tinha uma opinião formada. E que jogo divertido querer saber mais sobre isso.
Mais divertido ainda, no caso, que o autor se recuse a determinar isso. Acho interessante que tem alguns finais "abertos", "ambíguos", que me deixam decepcionado. Eu não sei dizer por que alguns finais abertos me satisfazem e outros não. Mas sei que esse me deixou não só impactado e pensativo, mas há algo de satisfatório nele também.
Mas agora, vamos lá. Os fantasmas são reais. E daí? Que quer dizer essa história?
Há quem diga, não só pelo texto mas também pelo contexto (de sua produção) que ela é bem "entretenimento" mesmo. Depois que terminei precisei ir buscar uns vídeos no youtube pra ver o que as pessoas estavam falando dela e me surpreendeu um pouco que as pessoas só comentem, ao falar sobre a grande variedade de interpretações possíveis, sobre coisas "factuais" - quer dizer, a margem de interpretação da obra é sobre o que aconteceu, mas não tem um significado mais profundo aí.
Primeiro, sobre essas questões de interpretação factual, tem várias coisas interessantes de fato... Eu confesso que, sabendo se tratar de uma história de terror (mais por conta do prólogo que por outras coisas; eu entrei meio "frio" no livro), eu esperava ali alguma coisa sobrenatural, e à medida que a história foi avançando comecei a "duvidar" de tudo: será que as crianças estava mortas também? (uma dúvida que vi algum youtuber, agora não me lembro quem, expressar também)... Não, mas o diretor do colégio, no mínimo, sabia quem era Miles, esteve com ele por tempo o suficiente para expulsá-lo, ele veio num carro dirigido por alguém que certamente não estava dirigindo um coche vazio... Então ok, ele era real. Provavelmente Flora, então, também era. Mas e a governanta e as demais funcionárias? Será que estavam todos mortos? Será que a própria preceptora estava morta? Não, não, ela teve que viver alguns anos mais, o narrador inicial a conhecia e soube a data de sua morte, quando ela lhe entregou o relato, etc. Ok, ela não. E o tio? Bom, o dinheiro que mantinha a casa tinha que vir de algum lugar, então...
De verdade, quando fui chegando mais ao final e intuí que a coisa não ia nessa direção (em nenhuma dessas direções), eu fiquei bem aliviado, sabe? Acho que fiquei esperando, ou suspeitando, desses "twists" todos porque a gente vai sendo adestrado por Hollywood a achar que as histórias precisam ter dessas coisas ("AHÁ... Na verdade... Ela estava morta O TEMPO TODO!!"), quando o verdadeiro terror é algo mais insidioso e, ao mesmo tempo, mais simples (mais sobre isso depois)...
Isso é uma coisa muito boa que eu vejo na literatura, e que tinha me esquecido um pouco, porque ando nos últimos anos um pouco (comparativamente) afastado das ficções, ao mesmo tempo em que consumo muuuita análise cinematográfica via Youtube. E aí eu acabo absorvendo muita coisa sobre narrativa dessa perspectiva mais "pop" - digo, mesmo que vá além da "jornada do herói", não vai muito; sempre aquela coisa de estrutura de 3 atos, tropes, certas coisas que a história "precisa" ter... E é muito bom quando a estrutura da história se desvia um pouco ou, mesmo quando não se desvia, se torna "invisível". Isso pode acontecer em histórias indie, em clássicos, ou em filmes de grandes orçamentos cheios de efeitos visuais... Mas é muito frequente que nestes últimos (e, vamos e venhamos, em histórias mais amadoras) a coisa fique MUITO transparente. Tipo, as coisas vão acontecendo e você sabe _exatamente_ o que está acontecendo; você quase consegue ver o roteirista checando a lista do molde pronto pra ver se não esqueceu nada. Nessa história, pelo menos, a imersão foi grande; eu nunca senti que estava sendo levado por caminhos típicos, por uma narrativa padrãozinho, pra um lugar-comum.
Outra questão que ficou pra mim, e fala bastante sobre a profundidade psicológica e o excelente estilo do autor, é sobre a opinião da governanta sobre tudo que estava acontecendo. Primeiro que a relação dela com a preceptora é muito legal, muito interessante. Mas fico pensando no que ela diz, mais tarde, sobre a Flora, que negava ter visto a fantasma da Jessel. Quando a preceptora pergunta pra governanta se esta acredita na Flora, a governante responde: "não posso contradizê-la". Nossa - isso me fez repensar tuuuudo que tinha acontecido até aquele ponto, porque inicialmente eu pensei "ok, será que ela está engolindo essa história de fantasmas porque naquela época o pessoal era mais crédulo mesmo?"; depois, pensei, "não, ela realmente gosta da preceptora e está sendo uma boa amiga ao realmente confiar no que ela tem a dizer". Inclusive achei que era legal, pra variar, não seguir pelo caminho comum de, tipo, todo mundo imediatamente desconfiar do testemunho sobrenatural. Aliás - meu deus, é muita coisa pra falar desse livro - achei bacana que a própria personagem nunca pensou "ah, todo mundo vai achar que estou doida!". Ela escondeu o que sabia POR OUTROS motivos, achei isso muuuito interessante! Uma lufada de ar fresco, realmente.
De qualquer modo, voltando ao ponto original, a governanta - sim, achei que ela estava sendo crédula, depois, amiga, e finalmente, achei que ela simplesmente estava sendo educada: achei que sua posição profissional tinha mais influência sobre ela do que inicialmente percebi: ela não podia, realmente, contradizer, nem a preceptora, que tinha mais autoridade ali, nem a filha do patrão (mais sobre isso depois). Então naquele momento que ela disse "não posso contradizê-la" ela realmente expôs a agonia do subalterno: e agora? "Po, você me coloca numa situação dificíl desse jeito... Não posso dizer que você tá mentindo, mas não me peça pra dizer que ela está mentindo também!". Então aí titubeei: será que ela só estava, esse tempo todo, tentando gerenciar o que ela via como desvarios da preceptora? Será que ela, como muitos leitores, também achava que ela tinha visto um retrato ou o que seja do Quint e da Jessel e estava de sacanagem, ou doida? Fiquei pensando, eu não podia mesmo ter negligenciado a influência de sua profissão, pois não estamos falando de um cenário urbano moderno, mas de uma história praticamente feudal: havia uma junção muito forte entre sua identidade pessoal e sua identidade enquanto governanta daquela casa. E mesmo assim, ela cede mais uma vez quando confessa que sim, podia contradizer a Flora - que acreditava que ela via Jessel porque não sabia de onde podia ter tirado tantas coisas "feias" pra dizer. E chorou. Bah - acreditei nela. Mas será que fui enganado pelo choro da governanta, que estava tentando AINDA dar um jeito de ser fiel a duas patroas?
Caramba que livro BOOOOOOOOM
Mas ok, temos uma última questão factual a analisar. Este livro, por acaso, é sobre... Abuso sexual?
Confesso que quando começaram a falar que o Quint passava muito tempo sozinho com o Miles... Que tomava "muitas liberdades" - com "todos"... E que a Jessel passava também muito tempo com a Flora... Hmmm... É claro que a minha cabeça foi _direto_ pra lá, né. Pra esse cenário. Aliás, eu acho que no mínimo dos mínimos uma coisa que eu achava que estava seguro é que Quint E Jessel eram, entre eles, um casal, por alguma razão secreto, sei lá. Algum escândalo rolou ali, talvez ele tenha engravidado ela, sei lá. ISSO eu senti segurança pra supor. Mas esses silêncios e meias-frases e coisas subentendidas ao redor da questão de qual era exatamente o problema de Quint (e de Jessel) me deixaram bem incerto mesmo. Afinal de contas, eu estava sendo muito depravado ao pensar direto nesse cenário? Será que eu não deveria considerar outras coisas?
Fui abandonando um pouco a conjectura, tanto é que, no final, quando Miles foi lentamente dizendo que foi expulso do colégio por ter "dito coisas", confesso que nem aí eu retomei a hipótese. Agora me parece óbvio - sim, ele contou pra outros as coisas que Quint fez com ele (seja com ou sem contexto), chocantes o suficiente pra terem causado sua expulsão. Mas eu não estava mais pensando nisso, talvez porque o tema da morte me fazia pensar que tinha a ver com um horror mais... lovecraftiano, talvez? Uma coisa mais "indizível" e etérea, um mal mais elementar, sem forma, e que por isso mesmo era rodeado de "faltas de descrição", isto é, ninguém conseguia se levar a botar em palavras o que essas figuras representavam. Como coloquei acima, algo mais insidioso, porque mais simples, mais fundamental. Acho que por isso eu afastei a hipótese sexual, até reencontrá-la nos vídeos do youtube - inclusive em um deles alguém (de novo não lembro quem) aventa que Quint abusava as crianças e Jessel acobertava (e aí não necessariamente os dois tinham uma relação). Hm. Não sei. Pode ser, também.
Pensando melhor agora, depois do fim, fico achando que não tem mesmo essa dicotomia entre os tipos de horror. Afinal, o mistério da morte representado pelas aparições acaba como que espelhando o sexo como mistério da vida; numa análise de simetrias, o pós-vida aterroriza por sua presença do mesmo jeito que a presença do impulso, ou do prazer, sexual aterroriza o pré-vida (adulta), que aí, no caso, são as crianças - todo o papo do guri de 11 anos já se achando um adulto, pô, tá meio que na cara, né... Embora isso (esse "tornar-se um aristocrata adulto" aos 11) era mais a norma na época que o livro foi escrito e mais ainda nos anos em que o relato ter-se-ia passado. E aí, quando falamos sobre traumas de abuso sexual, não é comum ouvirmos sobre como é difícil pra pessoa falar sobre o que aconteceu? Esse também é um horror "indizível". De fato, no fundo, todos os horrores são; pra Stephen King, é por isso que esse é um livro tão foda; porque histórias de terror são histórias sobre "segredos que seria melhor não contar e coisas que seria melhor não dizer". E isso permeia a narrativa inteira, todinha, e, aliás, não daquele jeito forçado - tipo um conflito artificial que se resolveria com uma frase de 5 segundos. Não. O livro é todo sobre "o indizível do horror" mesmo.
Tanto é que parece que forçar a dizer o indizível é o que mata Miles. Na forma do fantasma, claro, mas não é a mesma coisa? - o inconfessável se confessa, o reprimido é lembrado, e Quint se manifesta na realidade; o mal que fez, quando é trago à tona após sua morte, causa dor demais, causa _também_ a morte, então é como se Quint o tivesse matado. E não é como nos sentimos, ao confessar coisas terríveis, inclusive quando somos vítimas, quando temos vergonha de algo mesmo sabendo racionalmente que não deveríamos ter, que não é justo conosco, que... A gente diz, brincando, "eu prefiro morrer do que alguém saber disso". Ou, se não diz, sente um pavor que é pior que o medo dessa coisa desconhecida que é a morte. A morte aqui não é o medo principal, é a metáfora pro medo maior que é o medo de ter a intimidade revirada... Muito embora Miles já teria se revelado antes, em tese, para os amigos na escola, não? Então a questão é revelar para a preceptora. Por quê? Porque poderia chegar em seu tio, e aí ter consequências maiores? Porque agora que ele já estava crescido/crescendo, ele se sentia finalmente pronto pra deixar isso pra trás, e no entanto a preceptora o arrasta de volta, e ele sente que nunca vai conseguir se livrar disso? Hmmmm. Não sei.
Então de certa forma, independente se isso estava na mente do autor ou não, a metáfora do "mal" indizível aqui parece muito, muito maleável à realidade do trauma sexual; nos coloca inclusive diante de preconceitos próprios - por exemplo, acho que uma das razões pelas quais afastei a hipótese sexual de início é que as crianças estavam tão felizes e, digamos, "produtivas"; o que é um trauma que nunca se manifesta? Aí entramos em uma série de outras questões... Por acaso não podem as vítimas de um trauma serem felizes e produtivas? O trauma não pode se manifestar na interpretação de algo perigoso e daninho como prazer, e a busca desmedida por esse prazer, não ser uma consequência? (Penso aqui na ida de Flora, sozinha, ao lago). Coincidentemente há apenas alguns dias mesmo vi um vídeo da Kat Blaque sobre hipersexualização pós-violência ("Hypersexuality, Sex Positivity and Healing") que vai por aí, mais ou menos... Então, enfim.
Mas isso me leva à última questão: que outras coisas estão abertas pra interpretar nesse livro, que não sejam apenas as coisas factuais? Isto é, pra além de pensar no que de fato aconteceu ou não, este livro fala sobre o quê, no fim das contas? Acho que isso é pouco explorado nas resenhas que vi, ao menos no youtube, mas é real: o livro aqui TAMBÉM é muito multifacetado. Dá pra fazer uma análise socialista / de relações de poder - e aqui conta muito a relação entre a governanta, a preceptora, o tio ausente, os 2 sobrinhos (estes quatro últimos, ou no mínimo estes três últimos, como consta no material suplementar da edição que li, "na mesma esfera de poder")... Dá pra fazer uma análise feminista para além da questão do abuso sexual (e pra além da questão de gaslighting, também, que, como eu disse, não tem muito aqui não)...
E dá pra fazer também uma análise educacional. Um dos prazeres que eu tive nessa leitura foi justamente pensar, a certa medida, lá pela metade, que se tratava de uma metáfora sobre o crescimento e o processo de educação. A preceptora tinha um controle férreo sobre o processo educacional das crianças (embora aparentemente nada "industrial" como o sistema escolar moderno), e os fantasmas seriam como influências externas que estariam "doutrinando" as crianças, e ela sentia um ciúmes imenso disso. Pode ser uma questão também de pais, ou mesmo de toda uma geração, perdendo o controle sobre seus filhos ou a próxima geração, com crianças e adolescentes criando sua própria linguagem, seus próprios gostos, suas próprias opiniões, muitas vezes irreverentes, contrárias, ou mesmo indiferentes ao que veio antes, de um jeito que desespera quem não consegue deixar de ver o seu jeito de viver como o único correto e moral. Desespera tanto, de fato, que justifica o conservadorismo de costumes, isto é, uma atitude autoritária mesmo, e que leva, no campo da educação, a um protecionismo elevado, e uma demonização de qualquer um que tente, mesmo que com argumentação racional e por méritos próprios, influenciar jovens para uma certa direção. A demonização, então, tem a ver com essa questão de que essas outras influências (de quem a narradora não parece ter apenas medo, mas CIÚME mesmo) são representadas por fantasmas; pessoas que, afinal, nessa perspectiva de raiva, "deveriam estar mortas". Tá certo que a preocupação da narradora é com a educação porque ela foi contratada pra isso, mas enfim, em vários trechos, é isso mesmo: ela estava preocupada que seus pequenos seriam "corrompidos". Ora; estamos falando de sexualidade ou é uma metáfora para ensinamentos que venham a "desvirtuá-los" num sentido intelectual?
Por alguma razão que não lembro, essa interpretação deixou de me fascinar mais pro final do livro. Essa minha perda de interesse fez com que eu não pensasse muito mais nela, tentando encaixar o resto dos elementos - talvez não faça sentido, então, sei lá. Mesmo assim, é uma pequena provinha de que há aqui uma história muito rica. Muito simples, sim, em certo sentido, mas dessa simplicidade faz-se muito: é psicologicamente complexa de um jeito delicioso, narrativamente construída de forma exemplar, muito potente nas sensações que evoca, nas impressões que causam na imaginação, e, enfim, muito ampla nas possibilidades de projetar sentidos e interpretações até mais sociológicas.
Pra fechar: um vídeo no Youtube (em inglês) sugere ler o livro em partes ao longo de 3 meses, porque foi dessa forma que foi publicado (aquelas coisa de "o autor queria que fosse lido assim"), mas também porque isso dava um impacto muito bacana em termos de ir "mastigando" a narrativa aos poucos. Por um lado fiquei triste que não vi esse vídeo antes, já que talvez seria bacana fazer isso mesmo, mas por outro, a quem eu quero enganar - assim como eu gosto de tomar suco de laranja gelado de golão em golão, eu nunca fui de ficar lendo histórias a conta-gotas, eu gosto que elas me atinjam como marretadas mesmo, e essa foi das boas. Enfim, uma última dica, pra quem fala inglês, é o vídeo, também no youtube, "Hitler reacts to the end of The Turn of the Screw". Não sei muito o que pensar desse negócio de que os fantasmas não têm voz, mas o vídeo é engraçado!