Diego Lunkes 04/12/2018
Não é raro eu ouvir alguém dizer que a literatura brasileira é ruim. Me desculpe quem pensa desta forma, mas acredito que ruim tenha sido a sua experiência de ter lido um clássico brasileiro contra vontade apenas para fazer um trabalho da escola. Ou ainda, acredito que você nunca tenha lido por prazer uma peça de Ariano Suassuna. Sim, porque as peças teatrais do escritor são inventivas de tantas maneiras que desconfio de quem não goste de absolutamente nada a respeito delas. E a qualidade de suas peças se deve, entre tantos méritos, principalmente ao fato de Suassuna compreender o gênero teatral e explorar a escrita para que sirva ao gênero ao qual pertence.
A peça mais famosa de Suassuna é, sem dúvidas, "O Auto da Compadecida", que em 1955 pegou emprestado dos contos populares o personagem João Grilo e o popularizou como um malandro que vive de golpes para sobreviver à pobreza. Dois anos após escrever esta peça que viria a ser sua obra-prima, Ariano Suassuna elaborou "O Santo e a Porca", onde retoma várias das técnicas e temáticas utilizadas em suas peças anteriores. A peça é notável por apresentar uma trama com reviravoltas improváveis, por vezes absurdas, mas ao mesmo tempo dar conta de, com isso, representar de forma realista a região Nordeste do Brasil, onde nasceu o autor pernambucano. O próprio Suassuna reconhece que a literatura não consegue abarcar todas as nuances da vida e que toda história é essencialmente uma traição da realidade.
Aliás, é pertinente se falar em traição especificamente para esta peça, pois este é um dos temas centrais de "O Santo e a Porca". Suassuna começa nos apresentando Euricão, um homem cuja existência gira em torno de todo o dinheiro que guarda secretamente dentro de uma porca de madeira. Sua avareza é tamanha que Euricão vive constantemente desconfiado de que será traído por alguém e terá seu dinheiro roubado. Para demonstrar o absurdo desta avareza, Suassuna brilhantemente se vale da principal ferramenta do teatro escrito, os diálogos, e investe em situações que brincam com erros de comunicação, onde a graça está em os personagens se desentenderem por falta de informações, enquanto o leitor, ciente de toda a história, observa com deleite as confusões que as poucos vão se formando. Durante um jantar, uma porca é encomendada como prato principal. Euricão, não ciente da encomenda, desespera-se ao ouvir um empregado falando da porca.
"PINHÃO: É a porca? Levem lá para trás, nossa alegria hoje é essa porca. É a porca?
EURICÃO: Ai, a porca! Pega, pega o ladrão!"
O tema da traição ainda se estende a adultérios quando Pinhão tenta seduzir Dona Benona, irmã de Euricão, sem saber que esta na verdade era Caroba, sua própria esposa. Ora, sendo a base do teatro a interpretação, é interessante notar que assim como um ator dá vida aos personagens de Suassuna em uma representação da peça, da mesma forma temos mementos dentro da história onde os personagens fingem ser outras pessoas. Ou seja, personagens interpretando personagens. Mais uma vez, o autor explora as ferramentas teatrais, e aqui para compor uma cena que se vale de metalinguagem (o teatro falando sobre o teatro).
"PINHÃO: A senhora pode já ter passado a primeira mocidade, mas eu lhe digo uma coisa, Dona Benona, é nesse tempo que eu acho as mulheres mais bonitas! E a senhora pode não ser mais muito moça, mas é enxuta que faz gosto!
CAROBA [vestida de BENONA] — (À parte.) Ah, safado!"
Além de contribuir para o enriquecimento do gênero teatral brasileiro, a peça ainda merece o mérito de servir como um retrato da cultura nordestina. As falas dos personagens dão indícios de regionalismos linguísticos retratados por uma linguagem predominantemente oral que incluem repetições de palavras (Que é que você sabe?), pronomes de tratamento informais (Que é, Seu Euricão), interjeições religiosas (Pelo amor de Deus!), entre diversas outras marcas da língua falada. Os personagens, por sua vez, encontram-se em diferentes situações, o que evidencia as diferenças nas relações socioeconômicas, como senhor, Euricão, e seus empregados, Pinhão e Caroba; e nas relações de gênero, onde é Euricão que tem o dizer sobre quando e com quem sua filha Margarida deve se casar.
É realmente fantástico em quantas camadas o teatro de Suassuna pode se desdobrar. O autor parece determinado a inserir a vastidão nordestina dentro do pequeno palco de madeira da sua peça: o bom, o mau, o honesto, o corrupto, o casto, o luxurioso, o malandro, o tolo. Nada é deixado de fora: as pastagens, os gados, as pedras. Está tudo lá. E, volta e meia, o autor comenta sobre a própria arte de fazer teatro, como se interrompesse o espetáculo para lembrar ao leitor que, embora toda aquela história represente a realidade, a história não é a realidade. O autor faz questão de mostrar as rachaduras do palco, as costuras das fantasias e os rostos por trás das maquiagens dos atores. E ainda assim, mesmo acenando o tempo todo para o palco, o autor consegue convencer o espectador da realidade do seu mundo dentro de suas histórias. E isso só é possível porque, diferente do leitor que reclama de literatura brasileira, Ariano Suassuna não tem vergonha de abraçar a realidade que lhe foi dada.
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