frnkienstein 12/02/2022
RAÇA, GÊNERO, AMOR, INSATISFAÇÃO E IDENTIDADE
As palavras de Nella Larsen vivem, não parecem morrer nem mesmo quando você termina o prefácio de Ryane Leão e fecha o livro. Elas parecem estar continuamente vívidas dentro dele, andando, conversando e vivendo a todo vapor, parecem frescas e atuais, exercem fascínio e te seduzem ? ironicamente, são como a misteriosa Clare Kendry. Existe uma linguagem contida dentro delas que só o subconsciente tem acesso ilimitado, algo como o segredo da esfinge capaz de tocar uma parte obscura dos nossos corações que esquecemos ou que ainda não temos acesso.
Como mulher e como pessoa negra coexistindo no mesmo espaço, na mesma carne, no mesmo corpo, essa leitura me levou a lugares dentro de mim a quão meu conhecimento é superficial. Curta e revolucionária. Em alguns momentos, eu quis mais. Quis ler esse livro por um mês. Mas não posso dizer que ele não foi profundo o suficiente. E que você é invadida de um egoísmo por querer muito mais de algo que você tem pouco.
O aprofundamento das questões das mulheres negras é algo que carece até hoje, não só isso, mas para um povo que durante muitos anos foi impedido de viver e fazer cultura, ter pessoas como Larsen fazendo isso em sua época é algo único e louvável. Eu não só fazendo e produzindo cultura, mas exercendo esse papel de maneira exemplar e inspiradora para qualquer mulher negra contemporânea que deseja escrever sobre mulheres negras, suas ambições, suas vidas e suas diferenças.
Os brancos na escrita de Nella possuem uma liberdade poética para serem o mais caricato estereótipo porque representam uma única coisa; o supremacista branco e ignorante. Nella não deu importância ao sentimento branco, até porque existem inúmeros livros sobre o sentimento branco, mas, principalmente naquela época, poucos sobre o sentimento negro.
Jack, o marido branco de Clare, não é o foco e não é digno de condescendência. A ação gira em torno de Irene, Brian, seu marido, e a amiga de infância Clare que se sente solitária em um mundo branco ? mundo esse que parece não perceber a sua verdadeira identidade.
Clare busca em Irene algo que falta em sua vida; o Harlem negro e a se sensação de estar integrada a algo que é seu por direito. Enquanto as amigas de infância se reencontram nesse cenário arriscado, é impossível não falar sobre casamento, maternidade e insatisfação.
Nella não se preocupa em criar cenários de famílias negras perfeitas diretamente de comerciais de margarina, mas também não parece fazer de todas elas essencialmente sofridas ou abusivas. A família de Irene em Identidade é sobretudo afável, mas em nenhum momento perfeita, o que torna a dinâmica das personagens bastante humana.
Brian é um pai maravilhoso, mas sofre da mesma necessidade de jogar tudo para o alto sem se importar com o bem-estar coletivo da família que qualquer outro homem sofre pelo tédio ou pela vida e Irene é uma mulher incrível e uma mãe preocupada, mas nem por isso deixa de ter suas falhas e contradições quando tenta impedir Brian de contar aos filhos sobre racismo. Tanto Brian quanto Irene são protagonistas perfeitos em suas imperfeições e contradições.
Já Clare Kendry seduz o leitor à medida que também seduz Irene, possuí uma carência típica daqueles que precisam de calor e afeto, tem uma necessidade de liberdade similar das mulheres brancas que não se sentiam plenas em seus casamentos por não possuírem autonomia e terem suas ambições e aspirações intelectuais sufocadas, afinal, ela vive no mundo branco e o mundo branco é opressivo e machista, coloca suas mulheres numa posição completamente passiva e Jack é a representação sem- tirar-nem-pôr desse mundo. Não que o mundo negro seja isento ao sexismo, mas é inegável que Irene e outras mulheres negras de identidade têm muito mais autonomia que Clare, que Brian é um homem e marido muito mais honrado, que ele apoia a esposa e não a prende numa gaiola monótona e tediosa.
Identidade é um livro indevorável porque ele próprio te devora. Nella é inspiradora, não deixa a desejar em nenhum momento, cria personagens arrojadas, dinâmicas tensas e instigantes, fala sobre raça, amizade, gênero, amor e até flerta com uma espécie de safismo platônico. Identidade com certeza vai estar entre minhas leituras mais intensas deste ano.
Chorei pela primeira vez neste ano por causa de um livro. Não porque ele é dramático, mas porque ele me trouxe uma explosão de sentimentos e sensações que eu não soube expressar então a única alternativa para significar tudo isso era o choro.
O choro e a escrita.