Lucas1429 11/08/2022
À branquitude impassível
Nella Larsen, figura importante de literatos da Renascença do Harlem, movimento que procurou enaltecer e catapultar a cultura artística negra, com devida atenção quando expandido posteriormente, foi oriundo do referido bairro de Nova York, paisagem essencial desta obra, e soube ser ela mesma objeto tangível da interseccionalidade que posiciona suas protagonistas; num pretexto que elenca as disparidades da figura feminina num modo universal, desfazendo as cruezas machistas e sexistas, viu-se projetada num texto quase semiautobiográfico, que tardiamente foi contemplado no panteão indispensável da literatura moderna.
Descritivo, defere características singulares à Irene Redfield e à Clare Kendy, antigas colegas de infância que se veem num entrave de restituição temporal ao se reencontrarem anos depois, casadas, mães e configuradas no estilo familiar tradicional vigente. A primeira é emocional e a outra, racional. Estes abismos que as diverge, sendo ambas descendentes de afro-americanos de pele clara, pontuam suas interações e posturas a respeito da ancestralidade de modo opostos. Irene orgulha-se do sangue preto, enquanto Clare se desfaz da associação se passando por branca. Clare toda vida manteve-se incutida neste comportamento. Bonita, colhe as alcunhas da frigidez e da letargia para conseguir o que quer, incluindo o casamento com um bancário branco, rico e racista. Porém, Nella parece impressionar sua co-protagonista ao desenlace injustiçado que a fez renunciar sua ascendência quando seu novo mundo colapsa com o da amiga recém descoberta.
Constituído de poucas páginas, são os diálogos que sustentam o apogeu das ações quase inexistentes, o que consiste é um relato sincero de uma sociedade em crescimento e constante reformulação, idos anos 20, que compreende seu contexto preconceituoso na forma de depoimento aderente ao que se pretendia, reintegrar o que fora repreendido quando essa população emigrou forçadamente para as colônias europeias – agora, são eles cidadãos norte-americanos.
O subtexto apreendido fomenta um simbolismo que potencializa o comportamento de Irene: ela possui uma casa grande com empregada e dinheiro que a possibilita agir como uma esposa branca típica do lar. Mas tudo o que absorve com facilidade também contrasta com sua fragilidade tocante, quando passa à insegurança da presença de Clare em seu círculo. É ela a complexidade proposta por Larsen, de fato. Frente à amiga, o sentimento de admiração que envolve Irene e Clare vem margeado de suposições deveras: um enternecimento queer, protetivo, apenas amigável, ou rivalizado – teorias, nenhuma desenvolvida e todas elipsadas.
Eis a interseccionalidade aludida novamente, a autora encobriu suas garotas de camadas compreensíveis, que as compele às conjunturas que trespassam ao significado do termo nas diversas formas de opressão às questões e vivências específicas de cada uma (identificando-se). O final abrupto parece alimentar o ideário da inconsistência de ser mulher, negra e diminuída intelectualmente, talvez amedrontamento, soando ainda como solidariedade a um alguém sentenciado, ou de passagem, já que ambas se sustentam nos artifícios estéticos e familiares para comporem o esperado do coletivo e à expectativa de satisfação íntima, desilusão e expertise que Larsen parecia melindrada, mas não conformada: também ela uma mulher de faces, bibliotecária, enfermeira, esposa, conferiu em Irene o escárnio de perecer enquanto luta contra a própria insanidade. Exemplo de muitas.