Camila Gimenez 28/10/2020Identidade - Nella LarsenNuma viagem à Chicago de sua infância, Irene Redfield se reencontra com uma amiga que não via há mais de uma década, Clare. Além de terem crescido no mesmo bairro, ambas compartilham uma miscigenação que as permite se passarem por brancas. Adultas, Clare está casada com um homem racista que não tem ideia de suas raízes negras e aparentemente não vê nenhum problema em se apresentar como uma mulher branca. Irene, por outro lado, busca enaltecer suas origens e a cultura afro-americana em todos os eventos que organiza em Nova York. Em um misto de hostilidade e afeto, um relacionamento entre as duas surge, mexendo com elas de uma forma que mudará como se enxergam e como enxergam o mundo.
Nella Larsen nasceu em 1891 em Chicago, filha de uma imigrante dinamarquesa e um imigrante caribenho. Sua miscigenação deu a ela a possibilidade de se passar por mulher branca e de fato, toda sua infância foi frequentando escolas em comunidades só de brancos, até a adolescência quando se muda para Nashville. Isso traz contornos autobiográficos em suas obras. Foi um dos principais nomes do Renascimento do Harlem, um movimento cultural da década de 20 que incluía diversos tipos de expressão artística afro-americana, mas principalmente a literatura negra.
Neste romance, conhecemos Irene Redfield, nossa narradora. Aqui ela trata sobre seu relacionamento com Clare Kendry, uma colega de infância que cresceu no mesmo bairro negro que ela, em Chicago. As duas nunca foram muito próximas, mas a família de Irene tinha um carinho especial por Clare. Clare era órfã de mãe e tinha um pai alcoólatra que também morreu durante sua adolescência. Clare então foi adotada por duas tias distantes, senhoras brancas, cristãs e distintas que a levaram embora. Apesar de ainda tentar manter contato com seu local de nascimento, aos poucos as visitas de Clare se tornam mais raras até a perda total de contato.
Irene se casou, mudou-se para Nova York e teve dois filhos. Leva uma vida boa, seu marido é médico e sua rotina é tomar conta da casa e dos filhos, além das inúmeras festas, bailes e socializações na sua comunidade, apoiando e exaltando sua raça e origens. Numa viagem à Chicago, por um acaso reencontra Clare Kendry. O reencontro é um pouco agridoce, pois Irene tem certas ressalvas de Clare, uma vez que após seu sumiço, os boatos não foram dos mais gentis. De fato, Clare se casou e constituiu família, mas a base de uma mentira, pois Clare se passa por branca e por isso cortou os laços com todos da infância. Seu marido, John Bellew, é um homem branco extremamente racista.
Nesse encontro em Chicago, Clare convida Irene para tomar chá em sua casa, e sem saber que Irene era uma mulher negra (assim como sua esposa), John Bellew transborda de atitudes racistas que mortificam Irene, fazendo com que ela decida encerrar o contato com Clare de uma vez por todas.
Alguns anos depois, Irene recebe uma carta de Clare, em Nova York. Nessa carta, Clare conta como o encontro em Chicago trouxe à tona sua solidão, como deseja reencontrar os seus, voltar a fazer parte dessa comunidade. Irene tenta se manter afastada, mas Clare dá um jeito de entrar em sua vida, conquistando seus filhos, empregados e marido. Mesmo Irene não querendo proximidade e detestando como Clare se infiltrou em sua casa, o carisma de Clare faz com que todo seu controle caía por terra.
Controle que é a marca de Irene. Irene tem uma personalidade meticulosa. Planeja tudo para todos. Seu marido tinha o sonho de ir para o Brasil, mas Irene podou esse desejo e construiu uma vida para ambos em Nova York exatamente da forma como queria. Mas seu marido sempre teve aquela inquietação, aquela insatisfação, e isso atormenta Irene pois indica algo que ela não pode exatamente controlar.
“Ela só queria que ele fosse feliz, ainda que ficasse ressentida pela incapacidade de Brian de ser feliz com as coisas como elas eram, sem jamais reconhecer que, embora o quisesse feliz, Irene desejava que isso ocorresse apenas ao modo dela e por algum plano que ela tivesse para ele.” (pág. 80)
Isso pode ser um dos motivos pelo qual Irene sente tanta aversão por Clare. Clare somente responde à ela mesma, desde criança. Irene não pode controlar Clare, nem o que ela vai fazer. Se fingir de branca com um marido racista é um jogo perigoso que pode trazer consequências que Irene não teria como prever, consequências que afetariam sua rotina tranquila. Mas Irene também se contradiz. Existe uma atração em Clare que Irene não consegue sobrepor. Existem pessoas em seu ciclo que podem e são racistas também. Irene pode fingir que é branca por conveniência também. E isso é bom, pois Nella Larsen cria mulheres reais, não heroínas.
Irene abraça sua negritude e coloca a raça num patamar, ela tem uma dívida com o seu coletivo que pode acabar prejudicando a si mesma. Clare passa por um embranquecimento, pela facilidade que isso lhe traria para conseguir seus objetivos, mas pagou o preço por isso. Brian, marido de Irene, não tem o patriotismo característico americano, pois como se manter fiel a um país que te odeia e te mata? John Bellew é o retrato do colonizador branco, sua cegueira e estupidez.
O livro é curto, pouco mais de 150 páginas, mas traz várias nuances para refletir. Não somente a questão da raça e da própria identidade, como traz o título. Há também reflexos da dívida histórica, da mentalidade branca, da branquitude e negritude, e pensamentos mais individuais, como questões sobre confiança e segurança, até onde podemos ir para atender aos nossos desejos e o que podemos sacrificar para isso.