spoiler visualizarMarcella 21/05/2021
Um desserviço a quem tem transtorno mental
Aglaia é uma jovem adolescente que leva uma vida comum. Muito inteligente e apaixonada por livros, hábito que herdou de seu pai, ela convive com uma família unida, mas que tem seus problemas, e com seu melhor amigo Demian, por quem nutre uma paixonite secreta. Desde cedo Aglaia percebe que sente-se diferente dos outros, e durante essa fase de autoconhecimento, um grande acontecimento coloca sua vida de cabeça para baixo: a chegada de Thalie, uma irmã desconhecida.
O Pássaro Secreto levou o prêmio Kindle de 2020 e por esse motivo foi o livro enviado pela TAG Curadoria em maio de 2021. A proposta de um livro introspectivo sobre uma adolescente com depressão tinha tudo para ser muito interessante, mas, na minha experiência, acabou sendo uma grande decepção.
A narrativa é longa e cansativa. O fato de ser um livro sobre os pensamentos da narradora não é motivo para o cansaço do leitor, pois existem diversas outras histórias com essa perspectiva que fluem bem, o que não ocorre aqui. Aglaia narra, já com mais de 40 anos, os acontecimentos passados de sua adolescência, e me parece que ela dá voltas e voltas no começo, como se soubesse que nada conseguirá justificar suas ações, como se tentasse pelo menos convencer o leitor que ela merece sua compaixão.
Aglaia tem depressão e ansiedade, e isso a leva à bulimia, problemas muito delicados, principalmente em adolescentes, que normalmente já sofrem com as diversas mudanças em seus corpos e tem frequentes questionamentos sobre a vida. Porém, Aglaia não tem uma infância sofrida. Ela cresce em uma família estrutura (que tem problemas, mas é unida, a ama muito e não a abandona) e tem todas as oportunidades que um adolescente de classe média teria. O pai é ausente, e Aglaia sente uma necessidade de conquistar o seu amor, que sempre esteve lá, mas não é do jeito que ela fantasia que deveria ser. Ela tem problemas de autoestima, sofre um ligeiro bullying na escola (nada tão forte), mas tem a presença constante de seu melhor amigo. Os problemas psicológicos dela, inclusive, não são negligenciados. Sua mãe a leva na terapia, busca tratamento com remédios, e ao longo do livro percebemos o quanto ela se esforça para dar o melhor tratamento possível para a filha.
Ou seja, Aglaia é uma adolescente como a maioria dos adolescentes são, que precisa conviver com a depressão, como muitos também convivem.
O leitor pode tentar colocar as lentes da empatia e compreensão para entender as atitudes de Aglaia, mas acredito que é muito difícil retirar dela a culpa. Isso porque ela é uma menina mimada, mal agradecida, que não se contenta com nada que tem e fica cega de ciúmes ao conhecer uma outra menina que, nos seus próprios padrões, é melhor do que ela mesma. Ela age como uma criança birrenta e maldosa, que não poupa esforços para machucar quem quer que ela acredite ser culpada por sua infelicidade..
Na minha interpretação, o ponto principal dessa história é: os transtornos mentais NÃO SÃO justificativa para as maldades que a personagem comete. E todo o livro é contado como se sim, fossem justificativas, como se Aglaia sofresse e nunca tivesse agido dessa forma caso tivesse se tratado de forma correta. E isso é muito problemático.
A personagem ultrapassa o limite do razoável, mostra-se não apenas vingativa, mas ruim. Ao narrar a história trinta anos depois, ela ainda tenta se apoiar nos problemas psicológicos como motivo para não se culpabilizar, o que na verdade é só uma forma de não reconhecer seus erros e esquivar-se da realidade, onde muito do que aconteceu com ela foi causado por ela mesma, por sua opção à escuridão.
Ainda que não consideremos as atitudes da própria Thalie (que parece que em nenhum momento provoca ou motiva a raiva de Aglaia, além de existir), será mesmo que podemos achar uma justificativa para as atitudes da protagonista? Ela sequer cogita conhecer a irmã, que não tem culpa de nada; ela percebe que seus ardis para colocar os outros irmãos contra a menina não dão certo, e quanto mais ela perde o controle da situação, mais suas ações ficam cruéis. O sumiço que ela dá no cachorrinho de Thalie, por mais odioso que seja, pode até ser justificado pelo leitor mais empático, pois seria uma das formas mais eficientes de machucar a menina. Mas matar o cavalo preferido de sua avó? É uma atitude que ultrapassa o limite de uma criança doente contrariada. Durante a narrativa desse fato ela diz que, antes de cometê-lo, sentiu um ímpeto de consciência, mas “resistiu” e foi em frente. Em seguida, diz que o que aconteceu não é sua culpa, que não foi ela quem apareceu na família sem ser convidada, que não foi ela quem traiu o marido e trouxe o resultado para viver com a família. Aglaia fica perturbada com a traição, sendo que a própria mãe aceitou Thalie.
O fato é que Aglaia quer que as coisas sejam do jeito que ela quer, do jeito que ela imagina que devam ser. Ela cria um mundo ideal e imaginário em sua cabeça, e quando isso não condiz com a realidade, ela não mede esforços para atacar e machucar qualquer um a sua volta.
Esse tipo de história me soa como desrespeito a quem tem transtorno mental. Isso porque apenas fortalece um estereótipo irreal de que pessoas com ansiedade, depressão ou afins não são socialmente ajustáveis, não sabem conviver como pessoas normais. Pessoas que se apoiam em problemas psicológicos para cometer atos de maldade existem, mas elas não cometem atos ruins PORQUE tem problemas psicológicos, e sim porque são ruins.
Vale ressaltar aqui que tudo o que Aglaia faz de ruim é antes de ela ir para a clínica onde fica internada, então não tem como colocarmos a quantidade excessiva de remédios como motivo, a separação da família ou qualquer outra questão dessa linha, por exemplo.
Como se não pudesse piorar, o final do livro traz um estupro gratuito, que termina a história de uma forma sem qualquer esperança para a recuperação mental da personagem. A narrativa inteira Aglaia passa se esquivando da culpa e se colocando no papel de vítima e, nesse momento absurdo, quando ela é realmente vítima de uma situação que não pode controlar, a autora termina o livro com Aglaia dizendo que é uma fênix e renasceu das cinzas… nada pelo que ela passou serviu para ela melhorar como pessoa, mas logo após um estupro ela “renasce”? Isso é tão problemático que me deixa realmente pensativa sobre por qual motivo essa história ganhou um prêmio.
Não quero desmerecer a autora, que tem uma maneira muito legal de escrever e contar sua história, utilizando-se de diversas referências ao longo do livro. Porém, o conteúdo, para mim, não funciona.
Uma protagonista com quem eu definitivamente não me conectei. Um enredo forçado, que estereotipa pessoas com transtornos mentais, e um final absurdo. Não recomendo.