Pandora 13/06/2021
"O Pássaro Secreto" da Marilia Arnaud é um livro pesado. Ao longo da leitura pensei muito no quanto a adolescência pode, e com frequência é, uma época claustrofóbica da vida. Quando somos adolescentes pode existir um planeta com milhares de culturas e milhões de habitantes, mas se nossa experiência se reduz aos espaços da casa e da escola e nossas pessoas são apenas a família e os colegas de sala reunidos pela força do acaso e das condições da nossa classe social o mundo todo fica pequeno, o plural se torna singular, as nossas perspectivas não conseguem se esticar para se ampliar, a vida pode se tornar muito claustrofóbica.
Não por acaso há quem viva a experiência de ser adolescente e há quem sobreviva a essa experiência. Independente de qualquer coisa, espera-se, no ritmo alucinante do capitalismo, que acordemos da adolescência adultos funcionais, aptos a estudar, trabalhar, acumular bens e capital, produzir, andar, falar, socializar. Sabemos que muitas e muitos de nós não conseguem seguir nessa trilha, há quem fique pelos caminhos, quem chegue depois, quem não se torna funcional nem com todo esforço da psicologia e psiquiatria pós-moderna.
Para nossa vergonha, é um tabu imenso falar sobre essas pessoas e dos fatores que arrastam elas ou para abismos nos quais desabam ou as solidões nas quais habitam. Na maior parte do tempo ignoramos o sofrimento psíquico e quando falamos dele fazemos isso aos sussurros. Existe toda uma estrutura de opressões, machismo, capitalismo, homofobia, racismo, patriarcalismo nos desestruturando continuamente, mas é tabu trazer ao sol essa desestrutura. Na maior parte do tempo seguimos como se nada houvesse, tivesse sido ou venha a ser até o ponto no qual alguém, seja lá por qual motivo, fala e é uma explosão de sensações com as quais é até difícil lidar.
Em "O Pássaro Secreto", Marilia Arnaud conta a história de como se supera a claustrofóbica experiência de adolescer em nosso tempo, de como se entra em colapso e se perde o rumo de forma QUASE definitiva. A voz que nos conta essa história é a da Aglaia, filha mais velha de um casal composto por uma professora universitária e um ator de sucesso. Ela recebe esse nome saído da mitologia grega em homenagem as Três Graças, filhas de Zeus com Eurínome e esse é o primeiro dos muitos elementos que constroem o mal estar no qual a protagonista habita.
O pai é o sol em torno do qual toda a casa gira, um homem egocêntrico e egoísta, extremamente carismático, consegue ser fisicamente presente e ao mesmo tempo ausente, se esquivando dos compromissos da paternidade com habilidade incomparável. Absurda a Aglaia a forma como sua mãe, mulher inteligente e bonita, não só se deixa ofuscar pelo marido como aceita carregar sozinha a maior parte dos pesos da vida doméstica, das despesas aos pormenores do cotidiano. A formação familiar burguesa tradicional com o pai sendo tão ausente quanto é possível ser e mãe se deixando apagar pelo peso das responsabilidades cotidianas.
A família soma-se a escola, território no qual o corpo da Aglaia que não se encaixa no padrão de beleza e magreza esperando sendo assim recebido com toda violência da gordofobia. Se os adultos tem seus pudores, as crianças não tem e lá vai mais peso. Fui a criança que passou toda a infância e adolescência estudando em uma escola publica sucateada olhando para as escolas particulares do Recife com olhos românticos imaginando o quão felizes eram aquelas crianças que gozavam do uso de toda aquela infraestrutura. Me absurda grandemente descobri as negligências, falta de tato e violências escondidas naquelas paredes. Me choca a hipocrisia da brancolândia de classe média brasileira. Agem como se seu mundo fosse perfeito, luminoso, higienizado, mas tanta coisa má ocorre em ambientes higienizados, a brancura como sinônimo de pureza esconde muita atrocidade.
A Aglaia não é simpática, atlética, magra, dócil ou fácil. Ela é combativa, sincera, muito impiedosa na forma como expõe as hipocrisias e pequenas misérias cotidianas, pela falta de pudor e por não poupar o leitor de suas próprias características pouco doces ou suaves seria fácil antagonizar com ela SE ela não fosse tão sincera. Aglaia me lembra o "Poema em Linha Reta" de Fernando Pessoa Álvaro de Campos.
"Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil
Ó príncipes, meus irmãos"
Ela não é uma princesa e nos conta os seus atos ridículos, seus enxovalhos, confessa uma infâmia, uma covardia, nos diz quando e como foi vil. Não tem muito piedade para consigo, nem para com os para com os outro. Narradora implacável dos pecados grandes e pequenos. Narrado em primeira pessoa o livro caminha tenso, pesado... os poucos momentos de leveza acontecem apenas quando a protagonista sai da rotina CASA/ESCOLA e vai passar períodos no sitio da Avó Sarita. A natureza, o sol, a vida no campo e o amor incondicional e franco da avó trazem frescor, beleza e ar aos pulmões da protagonista são um alivio.
"O amor é o mais alto grau da inteligência humana..."
(Deus e o Diabo na terra do Sol, Canção de Djonga e Filipe Ret)
Nada como uma história de colapso para por em evidência os incômodos da nossa existência em sociedade. É fácil julgar a Aglaia, difícil é ser a Aglaia existindo em um mundo pequeno e limitado, se equilibrando no desconforto cotidiano, entre a escola a família, até seu interesse romântico da adolescência é um primo. Mesmo os livros, potenciais fatores de alargamento do horizonte, apequenam o horizonte dela, pois são os livros do pai, clássicos da literatura escritos em sua maioria por homens brancos.
Apesar da distância imposta pela classe social, a Aglaia foi uma criança de classe média e eu uma criança favelada, foi difícil para mim não ter empatia com ela e não me identificar, meu mundo adolescente também era pequeno feito de casa, escola, igreja); meu pai era o sol e as vezes também a sombra desse mundo; minha mãe se apequenava diante dele; também comi minha cota de bullying; até minhas leituras batem com as dela. Me distanciei da tragédia pela franqueza e constância da minha mãe e por ter facilidade de fazer amizades com pessoas da minha idade e mais velhas. Quando as estruturas me desestruturavam a cumplicidade de minha mãe e amigas me estruturavam, fui sobrevivendo assim.
Quando falta algo para nos estruturar é fácil cair. É preciso ser muito prepotente para não percebe o quão frágil é o edifício da nossa sanidade. Qual é a pedra angular responsável por nos manter funcionais, donas e donos de nossa consciência? Quando as nossas relações sociais e afetivas se somam as estruturas sociais só tiram e tiram de nós como nos manter inteiras? E quando não estamos mais inteiras é possível seguir?
Eu não sei, mas suspeito: há coisas para as quais não há conserto, mas é possível torres tortas resistirem ao tempo e se manterem integrando a paisagem urbanas. Tem uma amoreira no nosso jardim, meu pai implica com ela e ameaça cortar, para ele não cortar meu irmão poda e continuamos regando. Quando a gente menos espera ela renasce. Uma amoreira com espirito de Fênix!
Se esse livro fosse escrito por um homem provavelmente a narradora, não-princesa, vilã dramática, talvez não vivesse o fim de seu colapso, no entanto esse é um livro de autoria feminina e, se o final não pode ser considerado feliz, a vida continua após o caos.
"O Pássaro Secreto" da Marilia Arnaud foi o livro campeão do “Prêmio Kindle de Literatura", em consequência disso acabou chegando às minhas mãos em maio como publicação do Clube TAG.
site: https://elfpandora.blogspot.com/2021/06/o-passaro-secreto-de-marilia-arnaud.html