Remillie 21/08/2022
CHANEL MILLER.
Esse livro é INCRÍVEL. O melhor livro de memórias que li até agora.
Em janeiro de 2015, "Emily Doe" foi estuprada por Brock Turner enquanto estava inconsciente, atrás de uma lixeira, em uma festa que acontecia na faculdade de Stanford. Enquanto a estuprava, dois estudantes intercambistas suecos passaram pelo local e gritaram com ele, ordenando que parasse. Brock tentou fugir, mas os dois o perseguiram e o seguraram no chão até a polícia chegar.
Brock foi condenado a SEIS MESES na prisão do condado, e foi posto em liberdade após 03 meses, por bom comportamento.
Em 2016, um artigo do Buzzfeed explodiu em leituras e compartilhamentos. Era a "Declaração da Vítima", escrito por Emily para o seu agressor, e foi lido por ela no dia da sentença, no tribunal.
Esse livro trata desses anos. Esse livro é a história do estupro, do julgamento e da tentativa de recuperação de uma vítima de abuso sexual. Esse livro é sobre Emily Doe, que finalmente se apresenta como Chanel Miller e assume publicamente sua história. Miller vasculha minuciosamente o processo exaustivo que envolve relatar o estupro e reviver traumas através de julgamentos frustrantemente lentos e desumanizantes.
A escrita dela é FANTÁSTICA. Suas palavras são cativantes, emocionantes e poéticas. Fiquei impressionada com a forma que ela é capaz de articular todos os seus pensamentos, memórias e emoções angustiantes de uma maneira tão bonita e metafórica. A escrita é MUITO reflexiva, e me fez parar o livro pra respirar e pensar no que li por diversas vezes.
Ela nos leva de volta àquela noite e através de todo o horror e humilhação das consequências e do julgamento (que me deixaram ENOJADAS). Mas, principalmente, ela nos leva para dentro de seu estado de espírito e como foi acordar e descobrir que alguém, um estranho, se aproveitou de seu corpo inconsciente. Ela entra em muitos detalhes, então fica um aviso de gatilho para aqueles especialmente sensíveis à representação gráfica de agressão sexual.
É um livro tingido da frustração acerca do sistema legal dos Estados Unidos, que é veloz em acusar e duvidar da vítima, mas tão receoso em punir um agressor branco e rico. É uma exposição e uma reflexão sobre a cultura do estupro e sobre a condição de ser mulher. É uma mulher reivindicando sua voz e dizendo: "não sou apenas um corpo; não sou apenas uma Emily Doe sem rosto. Você deveria saber meu nome". É uma tentativa de mudar as coisas para outras mulheres, de oferecer esperança.
Separei algumas citações:
[Durante o processo e o julgamento, a mídia e o próprio juiz estavam sempre enaltecendo Brock: medalhista de ouro na natação, bolsa na faculdade, uma das melhores médias da turma. Falavam sobre como ele era um bom rapaz, sobre o seu potencial perdido, sobre como ele estaria "perdendo um futuro promissor por conta de um erro de uma menina que não sabe beber"] Chanel pontua:
"A maioria de nós sabe que o futuro não nos foi prometido. É construído todos os dias por meio das escolhas que fazemos. Nosso futuro é merecido, pouco a pouco, através de esforços e atos. Se não agimos de acordo com o que queremos para esse futuro, o sonho acaba. Se a punição for baseada no potencial do agressor, pessoas privilegiadas irão sempre receber sentenças mais leves".
[Após o estupro e durante o processo judicial, Stanford não ofereceu qualquer tipo de ajuda ou apoio a Chanel. Com a prolação da sentença, eles se ofereceram a "construir um jardim no local onde o crime ocorreu, e talvez colocar uma placa com uma citação". Chanel sugeriu três citações, e eles vetaram as três porque "passavam a imagem errada". Queriam que chanel escolhesse uma citação "feliz e inspiradora". Por fim, o jardim foi feito, mas a placa não.] Sobre isso, ela diz:
"Incentivo vocês a se sentarem naquele jardim, mas, quando fizerem isso, fechem os olhos, porque vou contar sobre o verdadeiro jardim, o lugar sagrado. A cerca de trinta metros de onde vocês estiverem sentados há um lugar onde os joelhos de Brock atingiram a terra, onde os suecos o derrubaram no chão, gritando: 'Que merda você está fazendo? Você acha que isso é aceitável?'. Ponham as palavras deles em uma placa. Marquem aquele lugar porque, em minha mente, ergui um monumento ali. O lugar a ser lembrado não é onde fui estuprada, mas onde ele caiu, onde fui salva, onde dois homens declararam: 'pare, chega, não aqui, não agora, nunca.'"
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Uma observação: Segundo a orelha, os veios dourados na capa do livro remetem à uma arte japonesa chamada kintsugi, que é o conserto (remendo) de uma cerâmica quebrada com ouro em pó e laca. É uma celebração de rupturas e cicatrizes e mostra que, embora o objeto não possa retornar ao seu estado original, os fragmentos podem se reconstituir novamente como algo único. Uma representação visual perfeita deste livro de memórias poderoso.