Mary Manzolli 01/02/2022
Uma história difícil e indigesta, mas necessária.
As histórias de um estupro, do julgamento e das tentativas de superar, contadas pela própria vitima. Chanel Miller, em 2015, quando tinha apenas 22 anos, já havia terminado seu curso universitário quando foi a uma festa, numa fraternidade no campus da universidade de Stanford, acompanhada de sua irmã e algumas amigas, bebeu algumas doses a mais, teve um apagão, acordando num hospital. Lá recebeu a notícia de que foi encontrada desacordada atrás de uma lixeira, semi nua, com um homem em cima dela, que ao ser interpelado tentou fugir do local.
O agressor foi identificado como sendo um aluno da universidade, atleta de futuro promissor, com uma carreira em ascensão e, após o julgamento, foi sentenciado a apenas 6 meses de prisão, tendo permanecido preso por pouco mais de 3.
O livro é muito sofrido e impactante e começa com um longo capítulo sobre o dia do estupro que logo de cara já nos deixa atordoados. A sequencia de exames altamente invasivos, fotos, análises, perguntas humilhantes, a ausência de informações claras, seguidas da culpa, tristeza, vergonha e a consciência de tratar-se apenas do início de todo o sofrimento.
Eu tenho um nome não é apenas um relato de um estupro, é uma importante denuncia das crueldades a que são submetidas as vítimas de violência sexual dentro do sistema judiciário, a culpabilização de seus atos, a incessante busca em desligitimar suas lutas, questionando seus comportamentos numa humilhante desmoralização das suas personalidades. É sobre encontrar o própria voz para se defender de um sistema que protege o estuprador e condena a vítima.
Recentemente o Brasil acompanhou o caso da jovem Mari Ferrer e nos revoltamos com o tratamento dado à ela pelos advogados de defesa. Com Chanel a história foi muito parecida ao criar-se uma narrativa que distorcia a sua imagem e lhe colocava na posição de destruidora do futuro de uma rapaz cheio de potencial.
Chanel prepara um discurso emocionado para o dia da sentença, porém não foi lhe dada a oportunidade de dizer tudo o que gostaria. O jovem estuprador recebeu uma condenação pífia das mãos de um entediado juiz que, em síntese, alegou que embora a violência tivesse acontecido, a vítima, por estar bêbada não podia garantir que não tenha sinalizado uma vontade e o rapaz por estar alcoolizado não tinha como perceber de forma clara que a vítima não quisesse, apesar dela estar desacordada. Os efeitos do álcool foram fatos determinantes na culpabilização da vítima e na atenuação da pena do estuprador.
No entanto, dias depois, a Buzzfeed publicou, na íntegra, a declaração que Chanel não teve oportunidade de ler no tribunal e, rapidamente, tomou uma proporção inesperada, sendo lida por milhões de pessoas, traduzida para várias línguas, até chegar ao congresso americano. Por conta disso ocorreram algumas vitórias com a alteração da lei de proteção às vítimas de estupro, o aumento das penas e até o mesmo o afastamento do juiz do caso.
É um livro indigesto, principalmente, para as mulheres conscientes da nossa condição de seres socialmente pré julgados e culpabilizados por todo e qualquer ato por nós praticados. Não devemos andar na rua sozinhas de noite, beber sem nunca perder a consciência dos nossos atos, não deixar o copo em qualquer lugar, nunca aceitar nada de estranhos, nem tudo o que pensamos deve ser dito, a roupa deve ser apropriada e se algo sair do padrão comportamental aceito é, com certeza, porque estamos pedindo para sermos estupradas.
Essa leitura nos faz enxergar o quanto ainda temos, entranhadas de forma, muitas vezes, imperceptível à olho nu, a tendência de culpabilizar a vítima. Querendo ou não admitir, fomos educadas dentro da cultura patriarcal de que o homem não tem o domínio dos seus instintos e que nós devemos evitar a todo custo provocar esses desejos. Buscamos nos proteger alimentando a cultura do estupro.
Apesar dos gatilhos, e são muitos, pois Chanel não nos poupa dos detalhes mais cruéis, e nos faz sentir uma mistura muito incômoda de sentimentos, é uma leitura muito necessária, para mulheres e homens, porque nos traz a consciência de que enquanto ainda precisarmos realizar um exercício mental para aceitar que uma garota que vai a uma festa e desmaia de bêbada, não está disponível para o sexo, enquanto for preciso um esforço sobre humano para convencer uma sociedade inteira e um sistema judiciário de que sempre significará NÃO, se a vítima não tem condições de dizer SIM e enquanto ainda for difícil chegarmos ao consenso de que o único responsável por um estupro é o estuprador, então não é seguro ser mulher e a gente precisa fazer alguma coisa para que essa situação mude