Lasse_ 31/07/2021
Tradição e sol escaldante
Ao ler o primeiro capítulo, a impressão imediata passada pelo livro foi a de que ele se parece muito, em ambas premissa e execução, com Absalão, Absalão! do Faulkner. De fato, assim como outros escritores latinos, Gabo leu e apreciou a obra do americano. Não li sua autobiografia, mas arriscaria dizer que há uma influência direta de uma obra para a outra. Vamos à enumeração dos paralelos:
Na crônica, um narrador distante temporalmente recolhe relatos para compor o panorama completo de um curioso caso acontecido décadas atrás. Em Absalão!, um jovem escuta as longas narrações de seus familiares acerca de um misterioso self-made man que apareceu um dia na cidade sem aviso nem história. Nos dois livros, a história se passa num momento diverso - mais de década atrás - do momento da narração, que se dá na boca de personagens que não são o personagem principal, que nunca tem a chance de contar sua versão da história. Apesar disso, as múltiplas perspectivas recolhidas de múltiplas testemunhas ajudam a compor um quadro quase completo dos incidentes, montando a história uma peça por vez, como um quebra-cabeça, e sempre de uma parte diferente não sendo uma narrativa que flui linearmente.
É claro, no entanto, que não se trata de uma cópia. Gabo, como não poderia deixar de fazer, utilizou de uma estilística literária que se aproxima da jornalística, ao passo que Faulkner recorre a intrincados fluxos de consciência. A história é contada de uma maneira que busca a imparcialidade e a objetividade, recolhendo fatos mais do que uma análise psicológica de motivos. Por isso, faz sentido que na crônica o narrador seja sempre em primeira pessoa, mas um que se parece com um narrador onisciente em virtude da natureza impessoal da premissa narrativa. Algo que se assemelha com o livro do Faulkner, onde a narração (que é soltamente ligada por um narrador em terceira pessoa que passa a bandeira constantemente aos personagens, tendo como única função a organização do plano meta narrativo no dia atual em que a história é contada) perscruta os motivos mais primitivos e recônditos de suas figuras humanas.
Tudo isso levado em conta, é inegável que a crônica em nada peca no que se propõe. É um livro genial, que parece reproduzir com maestria e poesia a tarefa jornalística de recompor de maneira objetiva algum incidente em todos os seus aspectos. A história é contada de forma não linear, mas seguindo uma lógica narrativa onde as descobertas estão perfeitamente encadeadas, como numa boa história de detetive, com a diferença que o caso vai se desdobrando lentamente, com o leitor fazendo parte ativa com sua individida atenção na construção do panorama geral, em vez de uma solução repentina no final do volume.