Edmilson Flor 01/05/2024
Afinal, qual é a palavra que resta?
Imagina você guardar, por mais de 50 anos, as últimas palavras que restam e que te prendem ao grande amor da sua vida, sem poder lê-las, porque você não é alfabetizado? É muito intrigante acompanhar a passagem da vida do Gaudêncio, a vida para quem tudo foi violento e extremamente limitado.
Nas passagens sobre a infância, fiquei muito comovido com a simbologia do castigo: o castigo da dúvida sobre a sexualidade, o castigo do receio da condenação, o castigo da vergonha, o castigo da dor física, o castigo de ser quem é. O narrador, porém, nos passa todas essas informações de uma forma muito poética, embora não romantizada, porque a dor presente nesse livro não é latente, ela é escancarada.
Também achei muito interessante a simbologia da cruz no rio, na representação do Dalberto, cruz que fica no local de gozo e ao mesmo tempo de tragédia. Era como se Gaudêncio e Cícero fizessem uma espécie de tributo sem saber, honrando a memória de quem, lá atrás, tinha enfrentado sozinho a homofobia da família.
A família, inclusive, é uma instituição muito bem trabalhada nessa obra. Gaudêncio, em momento algum, culpa a família, que é quem o rejeita. Ele sempre culpa somente a si, porque está muito acostumado com a ideia romântica de que família é quem coloca a pessoa no mundo. No fim, a gente descobre que a família mesmo dele era quem estava sempre ao seu lado: a Marcinha, sua irmã; e a Suzzanný, seu novo abrigo.
Gostei muito da leitura porque achei tudo bem construído, principalmente a ambientação e o foco narrativo. A linguagem única, sem dúvidas, também é um dos destaques desse livro e está totalmente alinhada à proposta do autor. O final pode fazer muitas pessoas surtarem, porque é quase que um anticlímax, mas eu gostei da forma como o romance se encerrou. No final, a palavra que restava não estava necessariamente na carta. Estava no próprio Gaudêncio, no seu desejo de liberdade.