Jhoanny Kelly 24/10/2022
Enredo Black Mirror: A profecia do mundo pós-moderno
Difícil explicar a imensidão de ideias e emoções que essa leitura proporciona.
Temos aqui um enredo distópico, construído a partir de uma sociedade governada por um regime totalitário, onde impera a censura e um sistema constante de vigilância e espionagem da população. Todas as informações são controladas de forma absoluta pelo governo do Partido, liderado pelo Grande Irmão.
Através da teletela - "placa metálica semelhante a um espelho fosco, embutido na parede" - instalada em todos os espaços públicos e privados, o Partido monitora e vigia, diuturnamente, todas as relações interpessoais e todas as rotinas dos indivíduos, não há privacidade. Além das teletelas, há microfones escondidos nas ruas. Aqueles que não se submetem ao Partido e contrariam o Grande Irmão são punidos rigorosamente pela "Polícia do Pensamento", têm sua existência deletada ou, como dizem os membros do Partido, são "vaporizados".
Como há um controle rígido das informações, o Partido pode "alterar" o passado: manipulando ou censurando registros e até modificando os livros, destruindo assim quaisquer provas que apresentem conotações contrárias às suas ações e a seus tácitos interesses de alienação da sociedade.
Para reforçar esse processo, o governo do Partido criou o "Novidioma", uma língua com vocabulário reduzido e gramaticalmente precário. O Partido, ardilosamente, limitou a linguagem para assim limitar também a capacidade de pensamento. Retirou palavras que contribuíam para, segundo ele, a formação do "pensamentocrime" - crime de pensar. A palavra liberdade, por exemplo, foi extinta. Além disso, outras palavras forram subvertidas: "vaporizar" passou a significar "executar". Construindo assim uma metáfora sutil para ressignificar as ações cruéis praticadas contra os opositores do governo. "(...) na vasta maioria dos casos, não havia julgamento, não havia registro de prisão, (...) as pessoas simplesmente desapareciam, sempre durante a noite", os desaparecidos tinham a existência cancelada e então dizia-se que foram "vaporizados" e todos eram proibidos de fazer menção a eles, era como se jamais tivessem existido.
E vivendo nessa realidade opressiva, temos Winston Smith, uma espécie de herói solitário, 34 anos, funcionário do Ministério da Verdade, especializado em criar, manipular e divulgar somente informações convenientes à ideologia do Grande Irmão. Eis que Winston percebe que o passado é distópico e que a consciência da sociedade se desconfigura a cada geração, pois a doutrinação faz com que crianças e jovens sigam como alienados, verdadeiros robôs, que reverberam os ideais do Partido, perpetuando seu poder através dos tempos. Essa percepção de Winston é um dos melhores plots do enredo. Acompanhar a trajetória desse personagem assusta, mas também é incrível ver a sua resistência e a evolução de seu pensamento. O livro foi publicado em 1949, porém há semelhanças entre essa ficção e os dias atuais. A tecnologia tem contribuído para ampliar os mecanismos de controle dos cidadãos e, assim como em 1984, hodiernamente, a vigilância é real e a perda da privacidade também.
O enredo é bem "Black Mirror". Através dele, alcancei uma percepção genuína sobre o quão incrível é a liberdade e me assustei ao refletir sobre como ela pode ser usurpada de nós da forma mais cruel. De longe, um dos melhores livros que já li. Não interessa quando ou quantas vezes eu o tenha lido, sempre encontraro novas percepções sobre a sociedade. Sempre me surpreendo. Vale ressaltar que não é uma leitura fácil, o despertar nunca é fácil, mas nada que vale a pena é...
GATILHOS: Manipulação, tortura, violência.
Finalizada em 16 de outubro de 2022, às 11h04.