Leila de Carvalho e Gonçalves 24/01/2022
A Violência Contra A Mulher
Em cerimônia virtual realizada em 25/11/2021, Flor de Gume foi anunciado o livro de contos vencedor do Sexagésimo Terceiro Prêmio Jabuti, trazendo para o centro das atenções o nome da estreante Monique Malcher, uma paraense de apenas 32 anos.
Abordando a violência contra a mulher, o livro tangencia assuntos delicados e até polêmicos, como o abuso sexual e a alienação parental. O resultado são 37 contos construídos a partir de histórias de mulheres próximas a autora, inclusive familiares, como também informações colhidas durante uma pesquisa acadêmica, realizada para seu mestrado em Antropologia.
Em prosa poética, o livro prima pelas singularidades e dois exemplos são o gênero híbrido e uma protagonista que marca presença nos contos. Divididos em três partes, eles acompanham o amadurecimento de Sílvia e possuem ?tons diferentes, conforme a personagem vai crescendo e as situações de violência vão acontecendo, mudando o falar, a narração e a percepção sobre outros personagens?. Logo, cada narrativa funciona tanto em conjunto como em separado e não é raro Flor de Gume ser considerado um romance para alguns dos leitores.
Quanto ao título, ele foi escolhido após a conclusão do livro e reporta a tenacidade das personagens femininas no enfrentamento da falta de equidade nas relações de gênero. Uma assimetria que, a despeito do cunho regional que espelha as raízes de Malcher, reveste-se de importância pela abrangência e universalidade dos temas.
Entretanto, Flor de Gume não teve um percurso fácil até chegar ao leitor. Desconhecida no meio literário, Malcher acompanhou o livro ser recusado, ou melhor, praticamente ignorado por mais de duas dezenas de editoras e, quando a única saída parecia ser um financiamento coletivo, uma cópia chegou às mãos da escritora cearense Jarid Arraes que, encantada, decidiu encaminhá-la para a Pólen Livros, atual Editora Jandaíra, e arcar com os custos de publicação.
Um apoio suficiente para fazer Flor de Gume virar o jogo e tornar-se referência quando o assunto é a superação feminina na ficção. A bem da verdade, ?Malcher escreve sobre o crescimento de mulheres resistentes. Desenha linhas de vidas que, sabemos, muitas vezes quase foram interrompidas; mas abre suas mãos e nos mostra uma transformação: a flor corajosa que se defende, reage, ataca. Esta é a imagem poderosa que tinge de verde o corpo de cada leitor: a lâmina dentro da beleza e a beleza possível porque também lacera.? (Jarid Arraes, Prefácio).
?É angustiante querer falar quando a ferida na língua ainda está crescendo. Sinto que as palavras que preciso colocar em algum lugar são tão ácidas, que impedem o próprio ato de falar. Pensei que falava demais, que fosse comunicativa o suficiente para escrever. Era uma criança normal, feliz, afinal, criança que fala é porque está bem, muito bem. E fingia acreditar nessa estabilidade, mas sabia que em algumas moléculas já se escondiam pequenas dores que iam construindo um buraco profundo em que as palavras tentavam dar conta, mas as que ficavam na superfície, as que transbordavam, não eram ainda as que poderiam me curar ou contar a minha história.
Que bobagem, querer falar sobre mim mesma, tão desimportante, enquanto comia compulsivamente escondida, sabia do meu crachá de senhorita nada. Ainda hoje, quando falo que estou bem em uma conversa qualquer com a minha mãe, me pergunto quem bate à minha porta, a menina mentirosa consigo mesma ou a que guarda a esperança de não estar o tempo todo assombrada? Não é exclusividade das casas serem assombradas, mulheres são também. Isso conheço bem.? (Camadas Das Memórias Em Lágrimas, Página 53)