João Pedro 18/11/2021Palavras que tocamGosto de deixar espaços para as leituras que me atravessam. Aqueles livros que surgem repentinos, embaralhando a ordem de leitura pensada. Prezo por dar atenção ao chamado de uma leitura, ao chamado ao encontro. Leitura é um ritual de encontro entre o leitor e o livro. "Família de quem" chegou assim para mim. Não estava em lista alguma, sequer sabia de sua existência, mas graças a algum algoritmo engraçado tive a sorte de encontrá-lo e, tão logo li a sinopse e alguns comentários, senti a leitura me chamar.
Em cinco contos únicos, que se entrelaçam ao ter como tema central as famílias, Ana Sá, em sua brilhante estreia literária e corajosa empreitada de se lançar como autora independente, transmuda em palavras os sublimes e por vezes delicados sentimentos que permeiam as diversas relações familiares. Diversas também são as facetas e personagens de cada conto, que, cada uma a seu modo, tocam em um ponto diverso do coração. Ao final, não se sai ileso dessa experiência táctil. Ana Sá é autora de palavras que tocam.
Tenho panfletado bastante a obra entre amigos e costumo dizer que é uma leitura que agrada fácil a quem se encantou com "O filho de mil homens", de Valter Hugo Mãe, ou com "Olhos d'água", de Conceição Evaristo.
Apesar de meu conto favorito ser "Madagascar", com menção honrosa a "Dia das Mães", parece que foi o conto "Compotas de amor" que mais imprimiu em mim algo de profundo. Vez por outra me pego refletindo sobre o conceito inventado pela protagonista infante, os seus amigos de escolha. A vida é bem isso, cheia de amigos e parentes de escolha, com os quais nos unimos pelo afeto mais que por qualquer coisa.
"As manhãs da infância e da adolescência de Elisa sempre tiveram cheiro de alho, e não de pão. Alho de mãe que madruga para aprontar as marmitas da família. É por isso que o acordar das periferias tem aroma de arroz ou de feijão. Na cozinha que amanhece já ocupada pelo meio-dia, fartura é um copo de leite ou de café, puro e em pé. Sem tempo de sorrir ou de partilhar a margarina do modo como se ensina na televisão. Mas para Elisa nada disso era incômodo. A gente não sente falta daquilo que desconhece." (p. 5)