Kakau ð 06/02/2024
Sobre dor, sofrimento, abuso e realidade.
Para uma mulher, escrever sobre maternidade é um enorme desafio, afinal, no exato instante em que uma mãe está escrevendo, ela não está cuidando de seus filhos. É uma escrita culpada, e uma das epígrafes de A filha primitiva remete ao sacrifício que, para sentar-se diante de uma página em branco, ao menos por alguns instantes uma mãe precisa deixar de fazer. Pois uma mãe é sempre também uma mulher, que, já dizia Simone de Beauvoir, não encontra nas funções de engendrar e aleitar uma afirmação da sua existência, e sim a passividade de suportar seu destino biológico. Vanessa Passos narra com vigor e crueza esse destino, expõe com coragem o valor do sacrifício que sua protagonista sem nome não gostaria de ter feito. E a ausência de nome, aliás, designa todas as mulheres do livro, como se a sina de uma fosse de fato a das outras. De certa forma, é.
Mas há traços específicos que justificam mais uma vez que a protagonista, sua mãe e sua filha não tenham nomes dentro da narrativa. Trata-se de uma genealogia esburacada, sem homens, desenhada por ausências, determinando uma personagem ?incompleta, mal construída, sem porquês nem explicações?. Se a linguagem nasce primordialmente do vazio, é justamente a ficção que tentará sanar as faltas: ?Vontade de escrever e criar histórias para tapar os buracos que faltavam. Preencher aquela árvore vazia que eu nunca fiz nem entreguei pra professora. E quem sabe, criar também um pai?.
A narradora tem uma relação difícil com sua mãe, culpa-a pela própria falta de história, mas, num movimento que aproxima A filha primitiva de um romance de formação, concilia-se com ela no momento mesmo em que escreve. Afinal, se a herança daquela família de mulheres sem nome é o desconhecimento da própria história, também o é a vontade de estudar e ter uma vida diferente: vontade de superar a própria herança.
A escrita opera uma conciliação bidirecional: não só com a mãe, mas também com a filha. ?Comecei a ter vontade de escrever, nas vezes em que me pegava observando a menina. Acho que passei a aceitá-la por causa daquilo, daquela vontade que chegava mais forte. Foi a primeira vez que pensei nela me dando algo, e não tirando tudo de mim?. Doação que parece salvar também a filha, afinal de contas, amar é dar o que não se tem. E que filha, ao fim e ao cabo, não é primitiva?
A filha primitiva de Vanessa Passos, com linguagem que escancara verdades sem amparo, realiza diversos feitos. Pois escrever sobre maternidade é, apesar e através da culpa, superar o que há de passivo no mero cumprimento de um fato biológico: é conciliar o chamado deste destino com a possibilidade de realização de si como mulher.