a voz que lê 16/01/2024
Um noir à la King
Billy Summers é um matador de aluguel, uma pessoa ruim que só dá cabo de pessoas realmente ruins; até me lembra o Dexter, um assassino de assassinos. Ele quer se aposentar e aceita um último serviço. Familiar, não acha? O próprio Billy tem conhecimento dessas histórias sobre um último serviço que tem tudo para dar errado. Ele lê, é um homem inteligente, mas se faz de burro para os demais, para se proteger e ao mesmo tempo não ser trapaceado se as coisas apertarem, sem desconfiarem que ele sabe bem mais do que aparenta. Mas é um profissional e confiam nele. O seu último alvo é uma pessoa especialmente ruim: outro matador de aluguel, mas este já não tem muita ética e também faz mal a pessoas inocentes. O problema é que ele será escoltado para uma audiência num forum só dali a algum tempo, então Billy precisa esperar. Para isso, passa a viver naquela vizinhança sob o disfarce de um escritor de primeira viagem que já tem agente e tudo. Ele começa a escrever sua própria história. E conforme o grande dia de realizar o seu serviço se aproxima, a desconfiança de que algo não parece certo enche a cabeça de Billy, que precisa estar preparado para o pior.
Stephen King é mais conhecido como o mestre do terror, mas sempre variou ao longo de sua carreira e ultimamente tem trabalhado mais em outros gêneros, como o policial. Aqui temos um thriller que tem ares de filme noir, pelo menos no início. E isso se reflete na escrita: em terceira pessoa, numa narrativa mais enxuta, frases mais curtas se comparadas com as que lemos em muitos de seus calhamaços clássicos (Stephen King tornou-se bem menos prolixo nos últimos anos, o que é muito bom), mas passa muito bem aquela impressão de história noir como se fosse narrada pelo próprio Billy, que é o principal foco aqui. Percebe-se que o King trabalhou em seu texto para causar uma impressão diferente de sua narrativa habitual.
E ainda temos mesmo a narrativa de Billy, em primeira pessoa, com ele contando a própria história num livro que surgiu de um disfarce só para matar o tempo, mas ele descobre ter aspirações maiores conforme dá um mergulho em seu passado. Vemos como ele se torna como é no presente e a história do livro de Billy até mesmo alcança o momento presente. O clímax ocorre quando o lemos narrado por Billy em seu livro. É interessante notar que a sua voz narrativa se transforma ao longo do texto: com ele narrando igual criança quando conta sua infância e a narrativa vai amadurecendo conforme ele narra sua vida adulta. Esse livro de Billy serve como uma maneira de apresentar a sua história pregressa e desenvolver o personagem, mas também ganha toda uma importância diferente mais ao final, tanto para uma personagem que entra em determinado ponto da história quanto para o próprio leitor em si.
A história se desenvolve num processo de espera que Billy deve passar, primeiro para realizar o seu serviço e depois para ir atrás de quem o passou para trás. Mas esses longos momentos de espera não são ociosos e nem tornam a narrativa enrolada. Muito pelo contrário: são nesses momentos em que entram na vida dele pessoas que despertam em Billy o seu melhor lado e fazem ele redescobrir em si uma pessoa bem diferente daquela persona ruim que ele tem carregado durante seus anos de matador. O ruim é que ele pode frustrar demais essas pessoas ou mesmo colocá-las em perigo, e o conhecimento dessa parte ruim passa pela cabeça de Billy várias vezes, surgem de maneira antecipada. O livro é cheio dessas antecipações durante os períodos de espera até os momentos em que Billy precisa agir. Mas o leitor é recompensado mais ao final, embora nem sempre as coisas saiam como o combinado. Gostei do final do livro, pois é condizente com o todo.
O livro também referencia um dos maiores clássicos do mestre, e não é só uma referência passageira, mas quase todo um acontecimento extra na história. Quase porque essa referência a eventos sobrenaturais nem mesmo influencia diretamente na jornada de Billy e também não quebra o realismo pé no chão da mesma, mas quase serve como um elemento desorientador para o personagem enquanto ele se recolhe na casa de um colega e espera o momento certo para agir, enquanto escreve um pouco mais de sua história. Também é um lembrete de que mesmo esses elementos sobrenaturais e fantásticos ainda coexistem com a realidade, mesmo que Billy não viva nada disso e suas preocupações na vida sejam outras, em que matar ou morrer faz bem mais parte do seu jogo pessoal. Mesmo com isso não sendo diretamente relacionado com a história, é sempre bom ver que essas histórias do King mais clássico ainda vivem em nosso imaginário e no do próprio King. Gostei da maneira como isso se desenvolveu dentro deste livro, apesar de ser uma coisa à parte da história principal.
Agora, não podia deixar de falar como King está afiado ao fazer suas alfinetadas de cunho político de um jeito que a gente até já viu algumas vezes antes em suas obras, mas aqui vem de uma maneira bem mais explícita. Uma galera aí não vai gostar muito, mas paciência. Acho que é o livro do King que de maneira mais direta se posiciona contra figuras conservadoras que escondem um lado sujo e perverso por trás de uma hipocrisia que se disfarça de virtude. O Trump é um dos alvos favoritos do mestre, o que não é uma novidade para quem o acompanha no Twitter. É claro que o King já fez comentários sociais e políticos usando a voz de personagens de maneira espalhada em outros livros, mas aqui ele é bem mais enfático, então ninguém pode afirmar que ele não dá importância ao tempo em que ele vive ou que não é um autor politizado, muito embora, ao lembrar de Bill em IT, a gente também pode se perguntar por que toda história tem que ter um significado maior para o meio literário. Por que uma história não pode ser só uma história? E Billy Summers ainda pode continuar a ser uma boa história mesmo para quem eventualmente se morda com seus comentários ácidos sobre o lado mais sujo da extrema direita.
Billy Summers é um dos livros de King melhor integrados a realidade atual (é até um livro pré-pandemia, que chega a ser mencionada em determinado momento, tendo sido escrito entre 2019 e 2020), mas ainda é uma história repleta de momentos emocionantes e personagens carismáticos. Um dos bons livros recentes do mestre.