Livia1107 10/11/2023
Lendo com amor e senso crítico
Neste primeiro volume, o experiente biógrafo e jornalista Fernando Morais apresenta Lula sob um olhar muito positivo, e mesmo eu, admiradora e eleitora do metalúrgico que se tornou três vezes presidente do Brasil, desconfio que há facetas do personagem que poderiam ser mais expostas, para conferir ainda mais credibilidade à obra. Porque essa biografia é, com certeza, uma reportagem muito bem feita, com apuração detalhada e contextualizações históricas importantes para a compreensão da trajetória do sindicalista que mudou o Brasil, e escrita com linguagem bastante dinâmica, às vezes até coloquial, que dá muita velocidade ao texto. A história não é contada de forma cronológica, o que torna a narrativa muito interessante: da prisão, em 2018, às dificuldades da infância e juventude, depois a vida de sindicalista, com a introdução aos os porões e gabinetes da ditadura militar, as grandes greves por melhores salários, o início do PT e de sua vida política.
As páginas nos tornam íntimos de personagens sobre os quais ouvimos falar o tempo todo na imprensa, e a história brasileira se coloca numa perspectiva diferente, pertinho do chão de fábrica, dentro de casas simples sem banheiro, na frente de delegacias em busca de parentes desaparecidos, em assembleias de trabalhadores que demandam melhores condições de trabalho. Trata-se de realidade de primeira. Mas, como toda história, tem vieses e reveses, caminhos escolhidos, aprofundamentos e retrações.
Morais escolheu iniciar a biografia pelo tortuoso e corrupto processo político-judicial que levou à prisão do então ex-presidente: desde a descrição detalhada de todas as tensas horas no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo até Lula ser levado de avião para a sede da Polícia Federal em Curitiba, passando por seus 580 dias preso e seu cotidiano de visitas, leituras e articulações políticas, sendo saudado diariamente pelo Acampamento Lula Livre.
As minúcias relatadas sobre esse período demonstram a capacidade investigativa do autor, o que me faz questionar, por exemplo, a superficialidade da exposição de todo o processo desencadeado por Walter Delgatti Neto, que ficou conhecido como “Hacker de Araraquara”, o responsável por invadir os celulares de Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e outros integrantes da Lava-Jato, expor toda a farsa jurídica e, em última instância, acabar com todas as acusações contra Lula e colocá-lo novamente no centro do tabuleiro político. Na biografia, o hacker foi descrito quase como um ingênuo que, apenas por estar muito interessado nas falhas dos aplicativos de mensagens, vasculhou a intimidade dos tubarões da Lava-Jato e soube exatamente para quem entregar o precioso butim. Para um exímio contador de histórias, achei que Fernando Morais poderia ter explicado melhor esse processo, sem amenizar as tintas para descrever um rapaz interiorano com um histórico, digamos, irregular. Quem sabe o autor retomará a questão no segundo volume?
Nesta biografia, como em outras que publicou, Fernando Morais foi um exímio contador de fatos. E, na maneira como são descritas as ações e reações de Lula acerca desses fatos, podemos montar uma imagem da personalidade deste personagem. No entanto, acredito que o escritor poderia ter aprofundado sua investigação e descrição das características que fazem de Lula ser quem é – amado, respeitado, idolatrado por uns, odiado e rejeitado por outros: quais são as possíveis causas do seu carisma, como ele lida com as pessoas, o que o irrita, o que o amedronta, o que o entristece, o que o deixa impaciente, o que o deixa feliz, o que o diferencia de todos os outros? Faltou, talvez, traçar um bom perfil e perguntar aos(às) inúmeros(as) entrevistados(as) – entre amigos(as) e inimigos(as) – sobre quem é, para cada um deles(as), o Lula.
Há muita história e muitas lacunas a serem preenchidas, e quero sem dúvida saber como Fernando Morais vai abordar em seu segundo volume questões polêmicas como o Mensalão e figuras como José Dirceu e outros petistas que efetivamente foram presos por corrupção, a questão da “governabilidade”, a escolha de Dilma para sua sucessão, o relacionamento com Michel Temer. Mesmo acreditando no projeto político representado pelo Partido dos Trabalhadores e reconhecendo todas as mudanças sociais implementadas por Lula, não posso deixar de esperar um relato justo, mesmo que não tão lisonjeiro, do político que já entrou para a história do Brasil para tentar fazê-lo, de fato, um país de todos. Estou muito ansiosa pela segunda parte dessa biografia.
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