Carlos.Vergueiro 15/01/2022
Lula: bandido ou líder popular?
São 154 páginas divididas em seis capítulos para contar a história da prisão de Lula decretada no dia 05/04/2018 até o dia da sua soltura, 8 de Novembro de 2019. Para que o biógrafo Fernando Morais utiliza mais de um terço do livro que pretende contar parte da história de formação do Lula a um evento que cronologicamente curto e recente? O julgamento da história de como uma das principais figuras públicas da história do nosso país passa determinantemente por duas visões distintas: Enquanto parte da sociedade o vê como um bandido, chefe de uma quadrilha criminosa, um homem sem escrúpulos, analfabeto e desqualificado para exercer qualquer posição de gestão, outra parte o considera um líder carismático, hábil articulador político, um cara que veio do meio humilde, que lutou por causas trabalhistas e quando teve a chance de governar fez justamente aos mais pobres. De uma sociedade com visões tão distintas de uma mesma figura pública é possível encontrar um consenso? Ou melhor, há verdades nas duas visões?
Quando um biógrafo do calibre de Fernando Morais, que já contou histórias de figuras emblemáticas, como Olga Benário ou Assis Chateaubriand, e abraçou temas como da imigração japonesa ou da guerra fria, tão diversos do que explorou nesta biografia, o leitor entra com uma expectativa alta. Todavia, um balde de água fria é nos despejado no começo do livro. Ao contrário de uma biografia comum em que se conta os anos de formação, da infância e juventude, Fernando Morais opta por começar com um tema espinhento para a trajetória do biografado e polêmico para a sociedade. Na minha opinião, a estratégia utilizada foi equivocada. Primeiro, por ser um fato recente em que os sentimentos estão muito aflorados. Segundo, o próprio texto, ao que indica o autor, estava em estágio primário perante o resto do livro, escritos desde 2011. Logo, há uma série de falhas no texto que tem a ver com detalhes contados (horários exatos, frases sem nexo, diálogos fúteis e personagens secundários) que talvez não estivessem em um texto melhor acabado depois de um tempo na gaveta. Esse excesso de detalhes insignificantes não encontrou o contraponto. Isto é, há tantas e tantas páginas contando minúcias das reações perante a sua condenação, o dia a dia no cárcere e as idas e voltas das defesas dos advogados e não tem uma linha sequer explicando os motivos da prisão. O erro mais grave de um biógrafo é deixar o coração à frente do cuidado com o texto. E o que espanta o leitor atento é o fato de nenhum editor ter pontuado isso, ter deixado um texto ser publicado sem explicar nada. Talvez tenha sido o erro mais grave de uma biografia que eu tenha lido. Como um biógrafo não narra os motivos da prisão? Pelo que Lula estava sendo preso? Mesmo que haja discordância sobre serem ou não motivos plausíveis, tendo ou não provas concretas, a justiça condenou Lula à prisão. Ao não explicar, o biógrafo perde uma grande oportunidade de argumentar. Se entrega à narrativa petista em dizer que havia uma perseguição da grande mídia contra o PT, mostrando em diversas passagens até com recursos de imagem. Perdeu a oportunidade em ser uma obra que dialogasse com todos os segmentos da sociedade. Deixou de combater a ideia do “Lula ladrão” porque não conseguiu defender Lula a partir das acusações que lhe eram feitas. Ele simplesmente ignorou. A armadilha que o biógrafo cai omitiu os seis processos pelos quais Lula ainda responde, escondeu a relação de supostos bens adquiridos por via de acordos com empreiteiras em seu mandato. É falso dizer que o PT governou junto com empresários, empreiteiras e banqueiros? É falso afirmar que nunca recebeu apoio eleitoral de JBS, Odebrecht e Itaú? O “mensalão” foi uma invenção ou várias lideranças petistas até hoje estão presas por causa dela? As obras superfaturadas do PAC não tiveram responsabilidade alguma dos governos petistas? E as obras internacionais financiadas pelos governos petistas não passam por suspeitas? Os motivos para parte considerável da sociedade brasileira tratar Lula como um bandido vem dos escândalos de corrupção que também apareceram nos mandatos petistas. Ao ser líder, a principal figura pública de seu partido, era inegável que Lula seria acusado. E qual é o papel de um líder? Negar simplesmente os fatos ou enfrentá-los buscando responder pacientemente cada um deles? Parece que Lula escolheu a primeira opção e isso fez com que seus fiéis apoiadores, os que confiam em Lula e vão até a morte com ele, o defendam com unhas e dentes, deixando aqueles que apenas buscam explicações sem saber para onde ir e acabam muitas vezes sendo influenciados pela mídia que se comportou muitas vezes com um tom de defini-lo como um bandido.
Após lido os seis primeiros capítulos em tom de defesa de Lula, deixando mais dúvidas ao leitor crítico do que propriamente respostas, o biógrafo salta para a primeira prisão de Lula, tornando claro seus objetivos: associar uma prisão em período de exceção (Ditadura militar) a um evento “pós-golpe” ao governo Dilma Rousseff. Essa associação tentada pelo biógrafo foi muito rasteira para um jornalista tão sério e apresso aos fatos históricos. Os elementos comuns nos casos (estar dentro do sindicato dos metalúrgicos, ter sido pego de surpresa e estar acontecendo um processo político muito importante – em 1980 as greves do ABC e em 2018 as eleições presidenciais) não deveriam se sobrepor aos elementos conjunturais totalmente diferentes. A tentativa forçada do biógrafo em uni-los acaba diminuindo os eventos de 1980 a dois míseros capítulos jogados no meio do livro. Ou seja, ao invés de explorar a situação de arrocho salarial, de repressão a greves e o papel do sindicato dos metalúrgicos para a história do Brasil no período, o biógrafo preferiu naquele momento se atentar a detalhes de horários que levaram a prisão de Lula em 2018. Esse desacordo entre o que foi narrado ao que precisaria ser melhor narrado, deixaram a primeira metade da biografia do Lula um texto fraco, fragmentado e, esteticamente, muito ruim de ler, longe do potencial que os fatos e a envergadura do biógrafo poderiam ter feito.
Temos de fato uma biografia, e não um panfleto mal escrito, a partir da página 202. Se o leitor resolver pular o livro e começá-lo no capítulo 9 verá uma outra obra. Com toda a certeza, o texto que lemos é delicioso nas páginas que se seguem. A trajetória da família Silva, os conflitos de Lula com seu pai, sua vida escolar cheia de percalços, seu lado esportivo, seus primeiros empregos e a entrada no SENAI, tudo é narrado com maestria, apresentando o ser humano Luiz Inácio com seus problemas e suas qualidades nos anos de formação, algo que o leitor esperava desde o começo. O Lula no mundo do trabalho foi um típico trabalhador brasileiro, trabalhava porque precisava, se indignava quando os acordos com seus parceiros de trabalho não eram respeitados por alguém e dava suas fugidas aos finais de semana para a praia com os amigos. Um trabalhador “alienado”, que não observava o golpe e o fato de estar vivendo um regime militar, que gostava de paquerar as mulheres nos bailinhos, que jogava seu futebol sempre quando dava, e que, até 1968 quando completou 23 anos, estava distante de ser uma liderança. Seu jeito não esboçava nenhum traço que pudesse revelar uma propensão para a política. Não gostava do sindicato, não se envolvia em política. Todavia, seu irmão mais velho, Frei Chico, foi quem deu os primeiros passos de Lula para entrar na política. Militante do PCB, Frei Chico incentivou Lula a fazer parte da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos nas eleições sindicais. Lula recusou de pronto, mas tornou-se suplente, isto é, apesar de não integrar a diretoria e de ser um sindicato “chapa branca”, Lula começaria a conviver com um ambiente mais politizado. Logo após, realiza seu primeiro casamento com Lourdes e três anos depois tenta seu primeiro filho. A primeira grande tragédia pessoal que Lula vivera aconteceu na maternidade: perdeu seu primeiro filho e sua esposa com quem se casara. Talvez tenha sido a grande virada na vida de Lula. O luto dolorido o levou para um isolamento pessoal nos meses seguintes, mas a sua superação veio no envolvimento com os colegas do sindicato e do futebol. Isto é, foram nesses espaços de sociabilidade que Lula dedicou parte considerável da sua nova vida que o levaram à primeira secretaria do sindicato em 1972. Aproveitando das regalias que vinha com o novo cargo, como a dispensa do trabalho e ter assistentes, Lula ousou romper com a ideia de um sindicalismo patronal que geria o sindicato até então. Por meio de um jornal, o Tribuna Metalúrgica, e uma atuação na porta de fábrica, Lula foi se descolando de velhas práticas e se apresentando também como alternativa ao PCB, partido que tentou captá-lo sem sucesso. Muito afeito à causa trabalhista, os maiores motivos de indignação de Lula foram se associando ao aumento no custo de vida (preço dos alimentos e inflação) e ao congelamento dos salários, colocando a categoria dos metalúrgicos, uma espécie de elite da classe dos trabalhadores que ascendiam socialmente com remunerações acima do padrão brasileiro, em situação de empobrecimento após 1973.
Em 1975, Lula é escolhido para ser presidente do sindicato. Incomodado com a postura dominadora do ex-presidente Paulo Vidal, Lula busca protagonismo e leva a campanha pela reposição salarial a uma escala nacional. Essa postura de buscar articulações em níveis maiores ao mesmo tempo que era um presidente que não ficava em escritório, foram apresentando um Lula líder e capaz de transitar em diferentes espaços mantendo a clareza pelo que lutava. Seus encontros com a ditadura militar em geral não foram ríspidos pelo fato de Lula não estar atrelado ao comunismo ou ao sindicalismo herdado de Vargas. Além disso, Lula ficou conhecido pela grande imprensa como o líder de um “novo sindicalismo”, avesso à política (Lula dizia: “eu não gosto de política e não gosto de quem gosta de política”) que focava unicamente nas questões salariais. O método que Lula inaugura era mais profundo que esse, foi ele quem inicia a costurar comissões de representação de fábrica, a realizar assembleias unitárias no sindicato, a ter uma atuação direta e sistemática nas portas de fábrica, a negociar diretamente com o patrão ao invés do tribunal do trabalho, a estabelecer relações com as c¬omunidades eclesiais de base para arrecadação de fundos assistenciais aos trabalhadores. Enfim, o “novo sindicalismo” teve a cara de Lula e mostrou a partir das greves no ABC que voltaram a acontecer em 1978, mesmo consideradas ilegais, e que explodiram em 1979 com participação maciça em assembleias de trabalhadores e dezenas de fábricas paradas ao mesmo tempo. A força do movimento teve repercussão nacional após as vitórias parciais conquistadas pelos grevistas. Estava claro, Lula se colocava como uma grande liderança dos trabalhadores perante a crise econômica e o arrocho salarial que a ditadura militar não conseguia resolver.
A fundação do PT teve como caldo político o movimento grevista no ABC. Lula perdeu sua aversão à política quando em uma das visitas ao congresso nacional percebeu que quem decidia os rumos do país eram apenas os patrões. Na visão de Lula, a luta sindical que tanto se dedicou somente traria vitórias maiores se houvesse um partido com interesses dos trabalhadores presente no congresso nacional. Foi dessa virada de Lula que sua imagem passou a ser vista como perigosa pelos governantes. Não é à toa que, no mesmo ano em que o PT é fundado (1980), Lula é preso pela ditadura no meio de uma greve que estava acontecendo. As justificativas da prisão dele e outras lideranças das greves eram de associar as motivações da greve a uma tentativa de luta pela abertura política, enquadrando-os na lei de Segurança Nacional. Como o PT tinha entre seus fundadores intelectuais que defendiam as diretas Já, Lula foi interrogado, inclusive por Tuma a mando de Golbery Couto e Silva, e teve que se manter encarcerado durante todo o período de duração da greve até que foi derrotada e as lideranças demitidas. Nesse interim, mais uma tragédia pessoal: Lula perdera sua mãe. Meses depois ainda de luto familiar, mais um problema político pra Lula: é acusado junto com Chico Mendes de ter mandado matar um capataz por terem associado um discurso em que dizia “está chegando a hora da onça beber água” à morte de um capataz de um fazendeiro. O enquadramento na lei de segurança nacional o levou para a prisão pela segunda vez no mesmo ano. Seu esforço no período seguinte foi para o CONCLAT, congresso que criou duas das maiores Centrais sindicais representantes do “novo sindicalismo”, a CUT e a Força Sindical. Depois, em 1982, se empenhou para a eleição ao governo do Estado, primeira de forma direta. Lula ficou em terceiro lugar com mais de um milhão de votos. Frustrado, Lula vai pra Cuba encontrar Fidel, que o acalma dizendo que um operário ter mais de um milhão de votos era motivo de orgulho não de decepção.
O parecer final sobre o livro é que poderia ter sido escrito de outra forma. Fernando Morais poderia ter esquecido as eleições de 2022 e ter se debruçado sobre os anos de formação do Lula, muito mais interessantes para a história do Brasil do que o um ano e meio que ficou preso. Além disso, há um enorme problema de narrativa: Por que o capítulo da prisão de 1980 foi contado duas vezes? Por que a insistência de ficar pegando fatos do passado e relacionando ao presente? Que o leitor tire as conclusões, não o biógrafo que deveria apenas contar uma história. Se o livro pretendeu se comportar como os anos de formação ao ter volume 1 e a foto do Lula da década de 80, o biógrafo cometeu um erro gravíssimo, pois não conseguiu narrar uma boa história para aquele que se tornou uma grande liderança brasileira e não absolveu Lula de acusações em ser ladrão. A “resposta política”, que resume a primeira parte do livro, destoa de uma segunda com perfil mais literário. Os amantes de Lula vão adorar a obra, que tem uma parte inteira dedicada à narrativa petista, Contudo, os que gostam de boa literatura vão terminar a segunda parte com um certo amargor nos olhos, uma sensação de que “era melhor ter ido ver o filme do Pelé”.