Toni 26/05/2022
Leituras de 2022 | Cortesia da editora
Cometerra [2019]
Dolores Reyes (Argentina, 1978-)
Moinhos, 2022, 104 pág.
Trad. Elisa Menezes
“Terra” e “poesia” guardam fortes semelhanças simbólicas: nelas, em tudo se plantando, dá. Reinos podem ser erguidos sobre qualquer uma das duas, ambas testemunham sonhos e barbárie. No entanto, quando a terra é transformada em sumidouro de pessoas, como fizeram as ditaduras do Cone Sul, o que a poesia pode, como toda arte, é fazer o silêncio falar. Nesses momentos, seguem caminhos distintos os veios da terra e os versos da poesia: o que uma esconde, a outra revela.
Cometerra, primeiro romance da argentina Dolores Reyes, reaproxima terra e poesia exatamente naquilo que as separa. Aqui, uma jovem negra recebe visões de pessoas desaparecidas e mortas ao comer a terra que aquelas pessoas pisaram. Frente ao descaso, incompetência ou má vontade da polícia em resolver os inúmeros casos que despontam a cada novo dia, familiares de uma cidadezinha recorrem ao dom de Cometerra para encontrar seus mortos e desaparecidos, salvando-os do perigo iminente ou dando início a um trabalho de luto que, como sabemos, permanece em suspenso sem um corpo a ser velado. Mas comer terra para a protagonista não é um trabalho isento de riscos: a cada punhado ela também ingere o medo, a angústia, a dor e o sofrimento daqueles que suas visões revelam.
Apesar da linguagem seca (ou mesmo por conta dela) o ritmo do romance é veloz sem perder, com isso, as camadas de sujidade social que a prosa de Reyes evidencia. Chega a ser impossível não apontar aqui sua metáfora mais evidente, sobre “comer a terra” (ou seja: a terra como “lar”, como “história” e nossa “pátria”) e perceber nesse gesto as violências estruturais que nos compõem (a colonização, o racismo, o machismo, o classismo, a subserviência...).
Um romance luminoso que nos faz ver formas nascidas da escuridão — tanto aquela que carregamos dentro de nós quanto a outra que nos aguarda no fim de todas as coisas.
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