Marc 09/03/2023
"Clichês Inéditos"
Existem coincidências em nossa vida que nos ajudam a entender certos eventos, ou ao menos nos ensinam algo que pode ser útil mais tarde. Alguns dias atrás terminei a leitura de “Monstros” de Barry Windsor-Smith, uma HQ que tem o único defeito de recorrer a uma solução açucarada para uma tragédia e a propagação do mal, pois se o autor tivesse a coragem de concluir como todo o seu trabalho exigia, ele teria feito uma obra-prima. Então, logo depois, decidi ler essa aqui, que recebeu inúmeros elogios. Uma história de horror com mussulmanos, pensei, poderia ser bastante interessante se os autores estivessem preocupados em fazer o trajeto correto do pensamento e não tentassem criticar o “homem-branco-cristão-heterossexual-ocidental-etc-etc-etc”. Que idiota que eu sou!
Claro que minhas expectativas jamais seriam correspondidas. O que um ex-editor da Vertigo faria se não criticar o Ocidente e o rotular de intolerante? Aliás, para quem ainda não leu, essa HQ é, sem tirar nem por, igualzinha às que a Vertigo publicava no começo dos anos 90. Até mesmo a estrutura da história é igual: um evento anormal (paranormal, para ser mais exato), que tira vidas e amedronta a protagonista, depois as coisas se complicam mais ainda, até que a protagonista ou outra pessoa se sacrificam para dar fim a ameaça. Um corte abrupto não mostra exatamente como o mal é vencido, mas somos transportados para a calmaria, onde os sobreviventes estão em dúvida sobre o que realmente aconteceu, lembram com amor da pessoa que se sacrificou e projetam o futuro. Quem leu “Sandman” conhece bem esse tipo de estrutura narrativa. Por isso, logo assim que percebi esse caminho, já comecei a ver a HQ com desconfiança, mas o pior estava por vir.
Imagine o que um ex-editor da Vertigo, ultrarradical, doutrinador e intransigente pode escrever diante da “ascensão do fascismo” mundo afora? Aquelas histórias da Vertigo são brincadeira de criança perto da narrativa manipuladora dessa aqui. Realmente, para quem não quer ser mais um número na massa manipulada, fica muito difícil encontrar algo de bom nessa hq. A história é um sucessão de clichês tão tolos que cheguei a pensar se não era uma pegadinha e a coisa ficaria séria mais para frente. Mas vai piorando. Em resumo: pessoas preconceituosas que morreram violentamente não conseguem “seguir o caminho da luz” e continuam no mundo, atormentando as pessoas de bem — que no caso são todas progressistas, não religiosas ou, quando muito, mussulmanas.
O tema das duas HQs (Monstro e essa aqui) é o mal. Mas veja como cada uma delas lida com a questão e diga qual delas tem uma visão verdadeira. Os editores teceram muitos elogios, dizendo que o autor não é maniqueísta, que mesmo as pessoas que sofrem preconceito tem algum tipo de pensamento assim em relação às pessoas que não entendem. Mas o ponto é justamente esse. Cair no conto de que todo mundo é preconceituoso porque (aí vem) o preconceito é estrutural. Esse é o grande problema de engajados radicais, incapazes de refletir e questionar se suas premissas são verdadeiras e se aplicam a todos os casos. Em “Monstros” o movimento é simples e direto: o mal pode até assumir um discurso racista, mas isso pouco significa porque ele afeta qualquer pessoa. Aqui, ao contrário, o mal passa pelo filtro do preconceito, pois todos o são em alguma medida. Assim, os diálogos assumem uma feição artificial, com os personagens sendo usados para transmitir uma ideia, não construir uma narrativa. Francamente, me assusta a quantidade de elogios que essa HQ recebeu, porque ela é muito mal escrita. Quem precisa fazer seus personagens assumirem posturas ideológicas para transmitir seu pensamento, a meu ver, não tem talento algum, porque não deixa espaço para o leitor discordar. O que os personagens dizem é exatamente o que o autor quer transmitir. Ele não consegue conduzir a história para que o leitor acompanhe os eventos e chegue a certas conclusões, é preciso dizer claramente, impedir que as pessoas desviem sequer um milímetro do que o autor quer dizer. Se “Monstros” fosse escrita por esse “grande talento”, certamente teríamos um personagem dizendo que o nazismo e sua teoria de supremacia racial serviram apenas como retórica para os americanos assumirem o poder do mundo. Quase 200 páginas disso mostrou ser não apenas fútil, uma perda de tempo, mas uma tortura. E isso é tudo que tenho para dizer sobre essa bobagem.
Mas vou aproveitar o espaço para refletir um pouco sobre a questão do identitarismo, que aparece aqui como a melhor coisa do mundo. Todas as pautas identitárias sofrem de um paradoxo que não podem resolver. Quanto mais elas afirmam a identidade de minorias, mais reforçam o movimento que dizem combater. É algo bastante lógico, no fim das contas: quanto mais o mussulmano (o exemplo da HQ) tenta afirmar sua identidade, sua religião, mais o “intolerante” vai se afirmar em contrapartida. Veja, não estou dizendo que não exista preconceito, racismo, etc, muito menos que essas pessoas devem se submeter aos valores contrários a seu modo de vida e fé; o que digo é que basta viver em paz, que os outros lhe deixarão em paz. E para os que não conseguirem, que incomodarem os outros, a lei deve impor sanções e criminalizar. Ponto.
Mas enquanto se afirmar que as pessoas sentem ódio, que qualquer manifestação em contrário é “discurso de ódio”, que qualquer olhar esconde o preconceito, então nunca avançaremos de verdade. O comentário de Ortega Y Gasset talvez elucide o que quero dizer — sem contar que é um grande e importante lembrete de como estamos nos tornando cada vez menos civilizados, pois esquecemos o conceito das coisas, seus significados, nos prendendo mais em críticas sem base. Em sua obra “A Rebelião das Massas”, ele ensina que o Estado surgiu para libertar as pessoas de seus primeiros grilhões, como o da língua, das pequenas sociedades de sangue, dos pequenos grupos e, eu acrescento, o identitarismo afirma o movimento contrário de uma volta a esses elementos que tornam as pessoas estranhas umas às outras.
“Se observarmos a situação histórica imediatamente precedente ao nascimento de um Estado, encontraremos sempre o seguinte esquema: várias coletividades pequenas cuja estrutura social foi feita para que cada qual viva dentro de si mesma. A forma social de cada uma só serve para uma convivência interna. Isso indica que no passado viveram efetivamente isoladas, cada uma por si e para si. Sem mais do que contatos excepcionais com as limítrofes. Mas este isolamento efetivo foi sucedido de fato por uma convivência externa, sobretudo econômica. O indivíduo de cada coletividade já não vive só dela. Mas parte de sua vida está relacionada com indivíduos de outras coletividades nas esferas comercial, mercantil e intelectual. Sobrevém, assim, um desequilíbrio entre duas convivências: a interna e a externa. A forma social estabelecida — direitos, ‘costumes e religião — favorece a interna e dificulta e externa, mais ampla e mais nova. Nessa situação, o princípio estatal é o movimento que leva a aniquilar as formas sociais de convivência interna, substituindo-as por uma forma social adequada à nova convivência externa.” (a rebelião das massas, p. 171 – 172).
Isso significa que o movimento de paz que as pessoas deveriam buscar seria o de criar um tipo de sociedade que não fosse nem de um, nem de outro. Mas quando tenta se afirmar algo que o outro não pode ser, tudo que se consegue é intensificar o movimento contrário. O mesmo acontece com os movimentos supremacistas brancos — não se preocupe. Uma cultura que não consiga ser universal, incorporando as pessoas de diferentes culturas e “aculturando” em nome do funcionamento dessa sociedade, falha miseravelmente. E, que me desculpem os críticos de plantão, só o Ocidente se propôs a fazer isso. Podemos fazer a crítica de que ele falhou muitas vezes, de que tivemos o nazismo, por exemplo, mas apenas o Ocidente tentou. Não vejo essa intenção nos identitários, não vejo seu desejo de criar uma cultura mais sofisticada e inclusiva, vejo apenas a necessidade de incluir suas diferenças em alguma coisa que eles querem que seja universal. Mas como é possível que algo seja universal e particular ao mesmo tempo? Eu não consigo dizer...