Djeison.Hoerlle 10/06/2023
O romance de Rafael Gallo foi vencedor do prêmio José Saramago de literatura. Esta informação era irrelevante para mim até alguns meses atrás, mas Saramago cresceu em minha perspectiva. Não por tê-lo lido, mas por ter me aproximado de pessoas que não somente o leram, mas que também sentiram-se lidas por ele, razão pela qual achei justo pontuar o tamanho da honraria concedida a este autor brasileiro.
No livro acompanhamos a derrocada de Rômulo Castelo, um virtuoso pianista, rumo ao fundo do poço. Mas como costumam ser a maioria dos bons estudos de personagem, este é um poço cavado por ele próprio, isto é, se o manejo de uma pá for viável para uma pessoa que dispõe de uma única mão, já que Rômulo, em um acidente, perdera não somente a mão destra, mas também, a própria identidade.
Um dos principais trunfos do livro é o vigor com que lapida esta derrocada. Quando pensamos estar diante da calmaria do fundo, na iminência de uma redenção, de um retorno à superfície, somos surpreendidos por novos golpes de pá, dilacerando a terra dura e úmida sob os pés do protagonista, despertando asco no leitor, mas também, pena.
E embora desconfortável em diversas passagens - de forma proposital, é claro - a escrita de Rafael Gallo faz-se notável pela fluidez. Existe poesia, existe exuberância e até um certo charme estilístico em Dor Fantasma, elementos que remetem à obras densas e cada vez menos acessíveis para o leitor moderno, mas que neste livro emergem em meio a capítulos curtos, compostos por cenas rápidas e diálogos contidos, sempre presos entre aspas. Este recurso potencializa a transição entre narrativa e interações, amarrando-as em um único nó e tomando para si o papel de fazer uma curadoria, não trazendo ao leitor a totalidade de conversas realistas e cotidianas, mas apenas as passagens necessárias para o avanço da história e lapidação de seus personagens. Esta estrutura não apenas prova-se um acerto, mas também, um dos principais trunfos do livro, já que ao contrário da maioria dos livros tidos como "bem escritos", Dor Fantasma não desafia o leitor, mas o auxilia a continuar imerso.
E mesmo tendo demorado cerca de um mês para finalizar a leitura - um mês atulhado de sonhos meus e não nos de outros autores - não houve um dia em que eu não me visse refletindo sobre as vivências de Rômulo. Não somente as já vividas na altura em que eu me encontrava da leitura, mas também as que ainda seriam vividas conforme as páginas fossem sendo viradas. Fazia anos que um livro não me fazia reflexivo e expectante em medidas equivalentes.
Cabe, por fim, pontuar a riqueza das passagens acerca da produtividade - a medida que separa os meros talentos dos gênios. Sendo oriundo de uma geração de procrastinadores, é duro observar como as ponderações cruéis de um protagonista cuja filosofia pessoal revela-se sua própria ruína, ainda assim me atingiram como lâminas. Talvez exista mais culpa do que saúde mental em cada uma das sessões de lazer que nos damos o direito, afinal de contas.
É, talvez, por este motivo, que eu faça do meu lazer, parte dos meus sonhos. Encaro cada leitura como um estudo, uma agregação de bagagem para as futuras escritas as quais executarei. Mas não são todas as que se adequam a este papel - de fazer refletir, de fazerem-se incômodas - mas Dor Fantasma, a exemplo de seu protagonista, é neste aspecto, virtuoso.