Carla.Parreira 16/04/2024
O livro narra a história de um pianista consumido pelo desejo de executar a obra inacessível de Franz Liszt, "Impossível de Tocar". Para alcançar esse objetivo, ele se dedica a um treinamento instrumental exigente. Contudo, ele desconsidera as pessoas ao seu redor, sentindo-se superior a elas. Melhores trechos: "...A medida de um homem é – em grande parte, se não por completo – a forma como lida com suas responsabilidades... 'Eu preciso fazer xixi', resmungou, na tentativa de retroceder. Foi domado pelo tranco dos braços do pai. O rosto dele se pôs rente ao do garoto: 'Filho, você já está se tornando um homem', diante da fala, as pupilas infantis se abriram. 'Então, precisa aprender a não se deixar levar pelas vontades. Um homem precisa ter domínio sobre si mesmo, estar no controle. Entendeu?' Ele balançou a cabeça para sinalizar o sim, enquanto a bexiga dava mostras do contrário... A mesma lógica de milagre parecia atuar ali: ao simples toque, música se propagava pelo ar. Ainda que fosse somente uma nota repetida – dó, dó, dó –, aquele se tornou o mais impressionante entre os assombros frequentes da infância. O menino sorriu, eufórico, porém logo foi repreendido: 'Não perca o andamento!' A severidade atenciosa do pai... 'Não peça desculpas. Só faça o que tem de ser feito.' O menino sentiu vontade de chorar, mas reteve as lágrimas, da mesma forma que se instruíra a segurar a urina. O aprendizado da secura. No rosto do pai, uma espécie de sorriso triunfante... Os senhores se lembram, por acaso, de alguém na nossa época dizer que tinha transtorno de ansiedade, déficit de atenção, ou algo do tipo? Não, nós fazíamos o que tinha de ser feito... Os sintomas dessa ferida reincidem de quando em quando, infectam seu juízo com distorções e negações. Como se o pensamento criasse anticorpos para combater a realidade inaceitável. Tem de controlar essa doença autoimune do intelecto, antes que ela o tire do prumo... Há um caminho, basta o esforço na direção certa. Eis uma das leis que sempre regeu a vida... Quanto mais anseia pelo adormecimento, mais se aparta dele... Ele espera algo para além do silêncio seguinte. Então, diz que lamenta. Seria essa a resposta esperada? 'Eu quebrei. Quando soube, eu quebrei. Foi como se, de repente, eu fosse uma engrenagem muito frágil, emperrada entre essas duas forças gigantescas: o amor e a aversão. O que eu ia fazer, continuar naquela adoração pelo meu pai, que fez a coisa mais odiável quando era vivo? Ou odiá-lo, quando ainda tinha tanto afeto por ele? O amor não some assim, de uma hora pra outra. Ou porque a gente escolhe. E eu não posso nem confrontá-lo mais, olhá-lo nos olhos. Tentar descobrir o que se passou na cabeça dele. Se é que isso faz alguma diferença, tem alguma lógica'... O pai tinha horror a quem gastava mais do que possuía... Que diferença faz às teclas do piano se as mãos que as tocam são masculinas ou femininas, brancas ou negras, saudáveis ou deficientes? O que importa à música é a música... E significância é a forma de deus, para a qual as religiões têm nomes diferentes. A vida, feita de nada. Rômulo Castelo, um dos maiores intérpretes de Liszt, prestes a ser: nada. Quase ninguém aqui, para vê-lo. Nenhum deus, nenhum pai, nenhuma luz que o direcione. Onde o amparo, então? Onde a morada fora do Éden?... Tudo é imperfeito. Mas há a harmonia, ela se constitui de alguma maneira. Pelo simples fato de coexistirem as partes que fazem dessa composição o que ela é, alcança-se uma forma de completude... E não há como matar o que já não passa de fantasma..."