Karlesy 09/01/2024Um dos grandes favoritos de 2023 ?Narrativa sensível e impressionante de Alana Portero sobre o desabrochar de uma menina transexual. Romance de formação que permite acompanhar os conflitos, angústias, confrontos, medos e, infelizmente, as violências sofridas por essa mulher transexual pós regime totalitário nazi-fascista (franquismo) na Espanha.
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A cada parágrafo senti a voz de muitas mulheres trans que já recebi em meu consultório, nos quase 15 anos de clínica voltada à questões de gênero. As "rezas para ser menina", o medo da puberdade, a disforia do corpo mudado, a tentativa de performance da masculinidade, o pavor de descobrirem seus segredos, a sensação de ter "algo defeituoso", a dificuldade em olhar seu reflexo no espelho e, finalmente, o entendimento da real identidade. A aceitação da verdade que sempre esteve ali e que só não veio à tona antes por conta da transfobia presente em cada canto de nossa sociedade e de nossas famílias.
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Termino esse livro extasiada pela beleza das palavras e pela forma da escrita ?? Queria ser herdeira pra dar de presente um livro desse pra cada paciente transexual que atendo ou que já atendi ao longo de todos esses anos ?
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"Sabia do meu medo da rejeição, sabia de minha vergonha. À medida que crescia, a vida se bifurcava inexorável, como placas tectônicas que se separam, não tinha forma de segurar as bordas e uni-las em uma experiência lisa."
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"Nada me permitia desabafar, não sabia pintar minha desgraça nem me ocorria escrever sobre ela, para não deixar provas. Então, eu a dançava ou me desdobrava e fantasiava com cenários de libertação. Principalmente, escapava através da literatura, do cinema e da música. Era uma espectadora de tudo o que me rodeava, mas não podia tocar em nada."
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"O ritual constituído por vestir-se, maquiar-se e apresentar-se ao mundo foi uma forma de transubstanciação. A passagem de uma vida fantasmagórica à corporeidade [...] Nunca me senti tão forte e tão vulnerável ao mesmo tempo. Como algo tão lindo, algo tão pessoal e tão extraordinário, como compartilhar com o mundo um feito que vibrava pura alegria, poderia ser percebido com tanta maldade por outras pessoas?"