Fábio Valeta 17/08/2019
Conheci Mary Beard graças a um vídeo compartilhado no meu Facebook pelo meu irmão Marcelo, uns dois anos atrás. Na época, achei a fala dela tão interessante, que acabei comprando tanto este livro quando outro chamado “Pompéia”, dedicado à aquela cidade (este, ainda aguardando para ser lido).
Após ler SPQR (o nome é um anagrama que, em latim significava “O Senado e o Povo Romano”), posso dizer com certeza de que as compras não foram em vão. O livro é um primor de erudição, didatismo e amor pela história. Em uma busca para detalhar os primeiro mil anos de Roma, de sua mítica fundação (supostamente) no ano de 753a.C. até meados do século IIId.C, a autora usa de uma variedade de fontes, pesquisas arqueológicas e análises tanto dos clássicos estudos sobre Roma quanto dos mais recentes.
Em um primeiro momento, ela procura discutir sobre os primeiros séculos da cidade mais famosa do mundo antigo, um momento na história no qual temos pouquíssimas informações vindas do próprio período. A maioria das fontes escritas são de 300 a 400 anos após a fundação da cidade e quase sua totalidade misturada com lendas locais. Um dos primeiros trabalhos do livro é inclusive tentar desmitificar os primórdios de Roma, partindo justamente de dois de seus mais famosos mitos fundadores: 1) a história dos irmãos Romulo e Remo, criados por uma Loba; 2) O poema épico Eneida, que vincula a fundação de Roma com a lendária guerra de Tróia. Com esses dois mitos, textos romanos (como dito acima, escritos séculos depois dos eventos narrados) e os resquícios arqueológicos do período, a autora procura traçar um panorama de Roma em seu início.
A arqueologia obviamente tem um papel fundamental nessa análise, mas no caso de Roma ela pode ser bastante complexa uma vez que a cidade possui quase 3 milênios de existência e nas escavações não é incomum encontrar objetos do século V a.C. misturados com outros do século V d.C. Construções muitas vezes foram erguidas em cima de construções mais antigas, usando as vezes uma pilastra ou muro da construção anterior. Então pode ser que uma casa erguida do século III d.C., por exemplo, pode ter como parte de sua estrutura esqueletos de uma construção muito mais antiga. A cidade de Roma é um grande sítio arqueológico em que o passado distante e o não tão distante estão intrinsicamente misturados.
Partindo desse início mítico, Beard analisa os mais variados aspectos da vida romana, desde as vidas do cidadão comum (sendo que muitas vezes os únicos indícios de existências são seus próprios túmulos) até de cidadãos mais ilustres e conhecidos, como Cícero, Júlio César e outros. À medida que avançamos no tempo, as fontes escritas são mais frequentes (embora muitas delas ainda produzidas décadas ou mesmo séculos após os acontecimentos narrados) e os resquícios arqueológicos mais “fáceis” de identificar.
Para facilitar esse trabalho, as demais ciências têm sido grandes aliadas do estudo da História. Eu fiquei fascinado ao descobrir que a partir do estudo das arcadas dentárias de esqueletos antigos, é possível descobrir a região aproximada de onde essa pessoa cresceu, uma vez que o tipo de alimento consumido durante o crescimento deixa marcas que podem ser analisadas pela tecnologia atual, e então serem comparados com o tipo de alimentação disponível em cada região do mundo, permitindo então toda uma análise sobre os movimentos migratórios dentro do Império.
A autora não fica limitada apenas à cidade, acompanhando o crescimento da influência de Roma à medida que ela se expande. Por sua extensão, existem mais de apenas um mundo Romano: o da própria cidade e o das regiões influenciadas por ela. Das areias do Egito até a Muralha de Adriano, na Britânia. E ainda assim, existem diferenças entre os ricos e pobres, os dominadores e dominados em cada uma dessas regiões. Beard tenta, a medida do possível, dar voz a todos esses grupos, embora alguns sejam mais obscurecidos pela falta de fontes e referências do que outros.
É um livro incrivelmente denso, mas com uma escrita agradável e acessível. Um trabalho que gera apenas satisfação ao ser lido.