Lucas 12/03/2022
A secura e o encantamento conversam entre si: A incrível obra símbolo de um tempo e de um povo
O paraibano José Lins do Rego (1901-1957) é um dos grandes símbolos nordestinos do movimento regional literário, que explodiu no Brasil a partir dos anos 1930. Em menos de quatro décadas, a cena literária nacional foi protagonizada por nomes do quilate de, além do supracitado, Graciliano Ramos (1892-1953), Rachel de Queiroz (1910-2003), Jorge Amado (1912-2001), todos estes também nordestinos; e o gaúcho Erico Verissimo (1905-1975), que tratou de erguer suas obras num contexto regional do sul do Brasil (diga-se do Rio Grande do Sul).
Falar bem desse regionalismo na literatura é um excesso de redundância: cada autor (a) citado (a), aproveitando-se de resquícios realismo literário inaugurado no Brasil oficialmente por Machado de Assis (1839-1908), direcionou seu escopo criativo para o interior do país, os seus rincões mais distantes das grandes metrópoles litorâneas. Agora de fato uma nação republicana e sem mais influência de Portugal, havia nestes princípios do século XX uma busca pela afirmação nacional do Brasil e a literatura, que representa o melhor espelho das eras, cumpriu no país um papel de destaque nesse processo.
Desse modo, dentre tantas e tantas obras memoráveis dos autores mencionados, o nome de José Lins do Rego adquire um espaço só seu dentro de qualquer olhar histórico para este movimento: o autor, aproveitando-se da sua origem (sua família era proprietária de engenhos de açúcar), elaborou o que ele chamou de "ciclo da cana-de-açúcar", um conjunto de obras que visavam descrever de forma romanceada a ascensão e queda deste ciclo econômico, a qual correspondeu à primeira grande riqueza do Brasil Colônia. Ao tomar tal decisão, que se revelou muito feliz, José Lins construiu um conjunto de obras extremamente significativas do interior nordestino (especialmente de regiões da Paraíba, Pernambuco e Alagoas), as quais foram sumariamente esquecidas pelo fim dos engenhos, ocasionado pelo início da corrida ao ouro em Minas Gerais e aumento da industrialização dos processos de fabricação e refino da cana-de-açúcar.
Fogo Morto, lançado em 1943, não aparece oficialmente no rol de obras que compõem este ciclo da cana-de-açúcar, mas a crítica de uma forma geral o interpreta como o ponto final desta série, aquele que expõe mais enfaticamente o declínio dos imponentes engenhos do Nordeste. E a mesma crítica coloca Fogo Morto como a obra-prima do autor. Para quem não conhecia os outros escritos de José Lins do Rego (como este que escreve), como o aparentemente excelente Menino de Engenho, seu primeiro livro, de 1932, bastarão algumas páginas lidas de Fogo Morto para que o leitor possa concordar com esta conclusão dos críticos: ele possuirá nas mãos uma obra especial.
A estrutura de Fogo Morto (que recebe este nome por significar os engenhos desativados) é simples: ele divide-se em três partes, de vultos díspares, focadas em personagens distintos as quais conversam entre si.
A primeira destas partes é a maior e, na opinião do autor desta resenha, a melhor e mais significativa quanto à mensagem geral que José Lins quis passar. Isso porque se Fogo Morto objetiva finalizar um ciclo ora virtuoso e no "presente" decaído, não poderia ter escolhido um personagem melhor para simbolizar esta decrepitude do que o mestre José Amaro, que protagoniza a primeira parte do livro. Ele é um homem duro, seco, que vive nas terras do senhor de engenho Lula de Holanda e trabalha como um seleiro (ele faz e conserta materiais em couro, especialmente selas, arreios e outros apetrechos para montarias e carroças). José Amaro é um sujeito perturbado, dono de uma honra exagerada que, na maioria das vezes o minimiza diante de outros personagens. Casado (o nome da sua esposa não é revelado, sendo chamada apenas de Sinhá), pai de uma filha, ele personifica toda a decadência daqueles tempos. Mas diferente de outros personagens, as quais também possuem um viés descritivo da decrepitude, a queda de José Amaro se dá por motivos psicológicos: ele já era velho, não tinha filhos homens (o que para alguém como ele era encarado como uma derrota séria na existência) e vivia uma vida monótona, em sua casa à beira da estrada que dava para o engenho de Santa Fé.
O relacionamento dramático que ele desenvolve com a esposa e com a filha, Marta, expõe em linhas tristes o homem difícil que José Amaro é. Trata-se de um personagem complexo, que desperta no leitor sentimentos de pena, aversão e simpatia, muitas vezes num simples passar de páginas. Seja incompreendido ou apenas um machista teimoso, o mestre é resultado de uma sociedade altamente patriarcal, onde sentimentalismos não se criam.
O caráter multifacetado desse personagem dá o tom geral de Fogo Morto. José Amaro é o elo narrativo de praticamente todos os outros personagens, as quais são apresentados ao leitor através das "prosas" que desenvolvem com o seleiro. Talvez esta seja a principal razão do fascínio dessa primeira parte: a preferência da narrativa por diálogos, permeados por pontuais e belas descrições da natureza e do ambiente em si. E outro aspecto enobrecedor é que José Amaro, ao relacionar-se com os outros dois protagonistas da obra, cria no leitor uma expectativa peculiar, já que inicialmente é o olhar de alguém de fora que descreve os mistérios e lendas destes elementos narrativos principais.
É o caso de Luís César de Holanda Chacon (Lula de Holanda), o senhor do engenho de Santa Fé e que é o foco da segunda e menor parte de Fogo Morto. Aqui, os diálogos dão espaço a descrições gerais do nascimento, ascensão e queda do engenho. Por isso, esta parte pode ser considerada como o "âmago temporal" do livro, que se relaciona à proposta inicial de descrever a queda do ciclo da cana-de-açúcar. Lula de Holanda casou-se com Amélia, filha de Tomás Cabral de Melo, fundador do Santa Fé (curiosamente, Amélia era o nome da mãe de José Lins, morta quando o filho era praticamente um recém-nascido) e, desse modo, acabou herdando o engenho do sogro. Sem que se revelem maiores detalhes, toda a saga do engenho de Santa Fé simboliza não apenas a decadência desse sistema econômico no nordeste brasileiro como também representa o poder destrutivo do choque de gerações. O lema "pai nobre, filho rico e neto pobre" sintetiza o quanto pode ser maléfico ao legado (econômico e cultural) familiar, construído ao longo de décadas de trabalho e sacrifício, o excesso de arrojo das gerações mais atuais, cujas práticas ficam quase tangíveis na narrativa de José Lins.
Narrativamente falando, deixando de lado essa questão de apego ao contexto social e econômico da época, a história de Lula de Holanda muda o tom da narrativa e prepara o terreno para o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, o também inesquecível personagem que protagoniza a última parte de Fogo Morto. Se José Amaro é conhecido pela "secura", o capitão é conhecido pelos seus abalos de coragem, na maioria das vezes descritos com um ar de bom humor. Mas sumamente, dois pontos são preponderantes na análise deste personagem: apesar da comicidade, o capitão Vitorino possui lapsos de loucura e teimosia, que trazem ao leitor mais pena do que riso; e é ele quem faz a ligação de todos os moradores de Pilar (a cidade onde se passa Fogo Morto, que deve ter sido baseada na mesma Pilar onde José Lins do Rego nasceu) com aspectos sociais mais amplos, tais como o coronelismo e o movimento do cangaço, cuja influência é exercida em todos os personagens principais.
Nas mãos de um escritor mediano, a decisão de trazer esse tipo de questionamento social a uma narrativa escrita de forma tão linda poderia ser equivocada. Mas José Lins do Rego, comprovando sua genialidade, utiliza-se do cangaceiro Antônio Silvino (1875-1944) para trazer à tona pontos de discussão que ajudam a explicar o Nordeste atual: os latifúndios, as explorações de trabalhadores pobres e analfabetos, os desmandos e interesses escusos das autoridades políticas, a cessão do direito de todos os seres humanos à dignidade, a desigualdade agrária e por aí vai.
Essa oralidade mais política é apenas um complemento, a qual engrandece Fogo Morto, mas que não traz a ele nenhum rótulo exclusivo de "grito dos oprimidos". Não afeta, por exemplo, o encanto trazido pelo estilo do autor, que preza pela simplicidade. Frases curtas sem serem vazias ou cinematográficas, desprovidas de maior refino vocabular, as quais captam a essência do momento de decadência que é narrado: há uma decrepitude social e no íntimo de grande parte dos personagens, mas isso não impede a exacerbação das belezas do lugar (especialmente as noites) e uma imensidade de momentos totalmente inesquecíveis.
Além desse aspecto mais político, vale destacar também o foco psicológico que José Lins direciona, especialmente, aos três personagens principais. Em maior ou menor grau, eles possuem um apego exagerado a um sentimento: o orgulho, ilustrado de diversas maneiras. Mas tal apego exagerado leva a situações cataclísmicas de perturbação interna, as quais compõem parte considerável das cenas inesquecíveis do livro. Ao descrever o homem comum, que simboliza um tempo em um espaço, o autor soube captar bem as nuances psicológicas imprevisíveis derivadas das ações destes personagens em um ambiente de relações humanas predominantemente secas e hostis.
"Os romances mais autênticos de José Lins (...) continuam doendo depois de lidos, porque a narrativa foi além da simples diversão aparente". Esta frase, dita por Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e reproduzida num dos vários textos de apoio presentes na excelente edição da editora José Olympio de 2018, sintetiza bem a obra-prima desse ilustre paraibano. Fogo Morto é uma daquelas obras que transcendem o caráter de "livro" e são verdadeiros monumentos de uma época e de um povo. O livro oferece, além da síntese perfeita de um tempo e de um movimento, uma leitura deliciosa, que emocionará até mesmo o mais cético dos leitores.